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Cilice Tour Report Pt.1

CILICE
"Os nossos passaportes foram feitos em casa"

Num país conhecido pelo seu espírito independente e liberal, acaba por ser normal surgirem bandas como os Cilice. Oriundos da Holanda, mais concretamente da cidade mais “à parte” do mundo, Amesterdão, este quarteto tem sido uma das recentes sensações europeias no contexto do metal experimental e matemático ao que lhes ficam a dever rasgados elogios pelo álbum de estreia “Deranged Headtrip”, lançado no mercado em Fevereiro do presente ano pela PMM Records. Com pouco mais de quatro anos de existência têm já um calo notável ao vivo, contando-se às centenas os espectáculos que completaram entre Holanda, Alemanha, Brasil, Reino Unido, República Checa, entre muitos outros países onde se inclui Portugal por intermédio da última edição do Metal GDL. Foi pressupondo peripécias interessantes destes habitués palmilhadores do asfalto que propusemos a Theo Holsheimer [guitarrista] um retrato da última digressão dos Cilice pela Rússia e Balcãs. Foram dez dias de grande corrupio que publicamos em dois capítulos.

29/09/2009- Terça-feira, 23h00
Estamos de partida para a Rússia. A polícia faz-nos parar logo após passarmos a fronteira alemã. Vemos um sinal de stop e lanternas a apontar-nos. Abrem-nos a bagageira e fazem a pergunta do costume: "Haben Sie drogen?" [Têm drogas?]. Que obsessão... Nessas alturas um charro vinha mesmo a calhar!

30/09/09 – Quarta-feira, 08h00
Já nos encontramos em Berlim. Nada mau pensámos. Porém, isto era comemorar muito cedo. Logo tivemos que cruzar a Polónia durante o dia e a Lituânia durante a noite. Apanhámos ruas "abandonadas" sem iluminação, chuva, luzes do trânsito que incandeavam.... Subitamente, pelas 4 da madrugada, um sinal de stop deparou-se-nos no caminho. Aparentemente tínhamos excedido os limites de velocidade. Corruptos... os polícias receberam 40€ em dinheiro "vivo". Uma boa receita extraordinária, o voucher oficial de 80€ não é emitido.

01/10/09 - Quinta-feira
Percorremos a Letónia. Às 19h00 chegamos à fronteira russa. Depois de passarmos uma fila enorme composta por camiões alcançamos uma outra fila com dezenas de carros. Será que a fronteira estava fechada? Abriria em breve? Reparamos que a fila se movia, embora a passo de caracol...

Posto fronteiriço #1 - Uma mulher de aspecto carrancudo fiscaliza os passaportes, visas e documentos da viatura. Todos nós temos que preencher um formulário.

Posto fronteiriço #2 - Fiscalização dupla - passaportes, visas e formulários são averiguados minuciosamente. Quase apetece-nos dizer: "Hey, os nossos passaportes foram feitos em casa!". O Matthias [nosso engenheiro de som] continuava a rular. Conseguia ver o lado divertido da situação. Com esta forma exagerada de fiscalização diria que são "espertos": assim convidam ao turismo, à entrada da moeda estrangeira, ao suporte da economia interna... Eventualmente, conseguimos os muito aguardados carimbos e pudemos avançar mais um pouco.

Posto fronteiriço #3 - A nossa carrinha é inspeccionada, incluindo o capot e a bagageira. Pudemos ver uma expressão de reprovação da parte de um dos oficiais. Pensaram: muito equipamento. Preparados que estávamos, mostrámos a nossa lista de equipamento e seus respectivos números de série. Mesmo assim, não foi o suficiente. Tivemos que preencher o mesmo formulário duas vezes listando bagagem de mão, equipamento pessoal, instrumentos e respectivos valores e números de série. "Ok, seja como quiserem". Entretanto, olhámos para o relógio e já se tinham passado seis horas. O tempo escasseava para o nosso primeiro concerto. Estávamos ainda a quatro horas de carro de São Petersburgo. Era já tarde para o teste de som. Neste instante, um homem fardado entra num veículo e conduz-nos a outro posto. Lá dentro tivemos que descarregar e abrir o material todo - flightcases, sacos de bateria e guitarras. Nessa ocasião os cães farejavam a nossa bagagem em busca de droga. Para além disso, o equipamento foi fotografado. Devem ter acabado de receber uma câmera nova... É muito divertido fazer música, não é? Carregamos então todo o material e somos mandados de volta para o sítio inicial. Mais espera... Recebemos cópias das fotos que tinham acabado de ser tiradas e a indicação de que quando deixássemos a Rússia tínhamos que apresentá-las. Perspectiva animadora sabendo que nos íamos submeter a todo esse processo no caminho de regresso.

Ao fim de oito horas vamos em direcção ao norte, ao mar Báltico. O plano era: chegar ao sítio do concerto, descarregar às corridas, fazer line-check e tocar. Parecia surreal. Às 23h30 chegamos a São Petersburgo, uma cidade que costumava ser conhecida como a capital mas que agora é a cidade "europeia" mais ocidental da Rússia. Praças iluminadas, canais, estradas rectilíneas e largas, parques e palácios.

Os fãs esperavam-nos no clube Zocolo. Um bom cenário não fosse o espectáculo ter sido cancelado! O toque de "recolha" soava às 23h00. Chá e tostas pareciam não satisfazer a nossa fome... Ah pois, eram tudo pessoas de pensamento positivo, como nós. Acabávamos de ter uma nova experiência. Submetíamo-nos a novas regras. Tivemos uma conversa com o promotor do espectáculo antes de subirmos para a carrinha e conduzir de madrugada para Moscovo...

02/10/09- Sexta-feira, 11h30
Agitação matinal; centro de Moscovo; estacionamento gratuíto. A Praça Vermelha, coração da cidade. Os Cilice eram uma atracção? Os turistas japoneses pareciam gostar de nos tirar fotos. Porque não? Pessoas bem aparentadas como nós! Ahahah.

Conhecemos o promotor, Vitali. O alojamento que nos proporcionava era o apartamento da mãe; grande hospitalidade novamente. Dá-nos uma perspectiva sobre a habitação que data da era comunista. Dois quartos -de-cama, um duche, uma casa-de-banho e um balcão. A pequena cozinha é também uma sala-de-estar. Era hora de comer, tomar um duche e relaxar.

Às 17h00 dirigimo-nos à sala do espectáculo com o Vitali e a sua parceira Denise. O Aktovity costumava a ser uma fábrica, agora está transformada numa plataforma para música alternativa. Há três semanas os moscovitas The Absolute Reign abriram para os Textures. Hoje é a vez de abrirem para nós. Fomos informados de que os nossos compatriotas saudaram-nos durante esse concerto. Fixe! Foi um primeiro espectáculo excitante... sem o nosso vocalista. Devido a circunstâncias menos felizes o Daniel teve que abandonar a digressão. Durante as nossas viagens o Remko [guitarrista] transformou as suas vozes originais em samples e aplicou-as sobre o instrumental. Eu próprio também acabei por fazer samples com um Roland SP40. Isto é improviso: a guitarra funcionou à esquerda e os samples à direita. Como vão resultar as coisas a seguir? Não sabemos!

Subimos ao palco sob olhares curiosos. Ficamos loucos e "arruinamos" a casa! O meu pedal MIDI da Engl estava avariado. Vai acabar no lixo depois do concerto. Continuamos a rockar! As pessoas aplaudem. No fim do concerto muitas pessoas se acercaram da nossa bancada de merchandise. Existia interesse em volta da banda. Conseguimos; sucesso! Sentimo-nos aliviados por termos começado bem. Tirámos fotos com fãs e bandas que nos cumprimentaram e demonstraram o seu respeito por nós. Quando é que voltamos? Já perguntávamos... Acabámos no apartamento onde bebemos, comemos e dormimos.

03/10/09 - Sábado
O concerto em Piskov, no clube TIR, foi cancelado - dia de folga. A Denise e o Vitali apanharam-nos para conhecermos sítios interessantes em Moscovo. Fomos até à Praça Vermelha, ao Kremlin, ao mausoléu do Lenin e à catedral Pokrov. O Remko e eu fizemos uma sessão fotográfica para a versão holandesa da revista "The Guitarrist". Estávamos num lugar popular para os turistas e vimos muitos casais em lua-de-mel. Nessa altura contei pelo menos dez limusinas.

Sparrow Hills, a sudoeste de Moscovo, observado do estádio Luzhniki [1980] e através da linha do horizonte da cidade. Vimos carrinhos com recordações absurdas. Podíamos comer panquecas com recheio à nossa escolha, entre eles salmão e caviar tipicamente russos. Para o Vitali a questão era: "De que é que a Rússia se pode mais orgulhar?" Resposta: "Da sua rede subterrânea com cerca de 200 estações". Relembramos de que Moscovo é uma cidade com 18 mil desalojados. A esta altura o que nos surpreendia era as senhoras de sensuais pernas à mostra.

Visitámos um monumento de guerra de 1940-1945. Uma avenida com fontes de luz vermelha adornavam a praça principal. No seu extremo encontra-se um pilar enorme, esculpido com imagens de todo o desenrolar da guerra, incluindo cidades russas. Impressionante!

Precisávamos, desperadamente, de usar a internet. Tal foi possível na primeira filial da McDonald´s na Rússia, no centro da cidade. Contudo, agora existe um restaurante McDonald's em cada canto da capital, bem como outras marcas e retalhistas ocidentais. Se quiserem gastar dinheiro, não há problema. Existem casas de câmbio e multibancos por toda a parte.

04/10/09 - Domingo, 00h00
Partida para Novgorod. De regresso ao noroeste russo. A viagem deve demorar seis horas. Hora de reabastecer. A primeira estação de combustível que encontramos está fechada. Está cheia de prostitutas. Vamos apanhar a próxima estação. Tivemos sorte - gásoleo a 0.50€ por litro. Dois taxistas bêbedos, encantados com a nossa presença, voltam aos seus táxis depois de nos apertarem a mão várias vezes. Imaginem que são um dos seus clientes...

De regresso à estrada. Não encontramos muito trânsito, nem estradas sem luz. Aproximamo-nos da entrada para uma vila e controlamos a velocidade. Habitualmente há polícia nas estradas e não queremos confrontos com eles. 06h00, chegamos a Novgorod. Estacionamos e dormimos.

Acordei pelas 10h00 e constatei tempo chuvoso. Saí para explorar a área. Fui a um centro comercial. Vi roupa, chapéus de pêlo, peixe... Então, numa secção de áudio de uma outra loja, deu-me vontade de rir: era tudo gay ali ou ninguém falava inglês? O "alarme" era dado por uma batida techno alegremente acompanhada pela frase "estou orgulhoso por ser gay"!

Segunda "metade"; era tempo de ir, mas não muito rápido. Temos uma surpresa: o pneu esquerdo traseiro está meio vazio. Os pneus acabam sempre por ser afectados com esse tipo de viagem em estradas que mais parecem queijos suiços. Não demoramos a encontrar um compressor. Tudo volta ao normal.

Assim que chegamos procuramos o Stereo Bar que fica localizado numa antiga área industrial. A fazer o nosso suporte estão bandas de punk e hardcore melódico. Os putos ficam doidos com elas. Nós ficámos passados durante a nossa actuação também e o público correspondeu bem.

Tal como em Moscovo e São Petersburgo existem aqui muitas lojas 24 horas. Hora das panquecas! Ficámos acomodados em mais um apartamento típicamente comunista. Acediamo-lo através de um código. A entrada estava em decadência. Situava-se numa pequena zona residencial. Eu e o Matthias pensámos o mesmo: "Vamos dormir na carrinha. É muito mais seguro sendo que o nosso material está lá dentro".

Theo Holsheimer [Cilice]
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