Como interpretar rótulos musicais
Os géneros musicais são frequentemente olhados como limitadores, castradores e/ou pura e simplesmente simplificadores por parte dos músicos, criadores de arte per se. Compreende-se como para um músico que queira deixar todas as suas opções criativas em aberto possa ser frustante pensar em termos de denominações de géneros musicais (na mesma medida em que um pintor com a tela em branco se sinta limitado pelo facto de saber que os primeiros traços podem “engavetá-lo” num movimento específico que, enquanto manifestação artística, não lhe diz absolutamente nada). No entanto, os géneros musicais e os termos pelos quais são conhecidos são de importância comercial e estética capitais, pois permitem uma descrição mais rápida e “categorização” mais fácil. Apesar de tudo, estamos a falar de arte e, por isso, as regras que definem os estilos não são estanques nem firmes, mudando à medida que a própria arte – entidade viva e activa – se vai desenvolvendo e metamorfoseando.
Em termos jornalísticos, a “catalogação” da música serve o propósito da rápida descrição. A comparação de artistas serve o mesmo propósito, mas demoninar um artista como “artista jazz” envia uma ideia imediata geral ao público-alvo, aos leitores, usando um termo universalmente conhecido e aceite de modo a que, a partir daí, toda a descrição vá no sentido do detalhe. Se falarmos em termos meramente metal, uma banda de metal industrial será consideravelmente diferente de uma que pratique doom metal, mas por exemplo dentro deste último estilo bandas como Witchcraft ou Morgion, sendo geralmente aceite que praticam ambas doom metal, têm sonoridades e identidades musicais bem diferentes.
O mesmo se passa a nível comercial. À medida que as lojas se vão transformando em superfícies maiores, entregues a grandes redes multinacionais como a que opera em Portugal sob o nome de FNAC, torna-se essencial “separar as águas”, de modo a que públicos à partida diametralmente diferentes saibam exactamente onde se encontra a “sua” música. Deste modo, o público que gosta de música clássica tem o seu próprio departamento especializado à disposição, assim como o público que aprecia música étnica, jazz, electrónica, metal ou pop/rock. Os responsáveis pelos diferentes departamentos são diferentes, há editoras especializadas em cada um dos estilos, códigos internos para cada um deles, vendedores e jornalistas que trabalham apenas dentro de cada um desses estilos. Toda uma hierarquização construída com base em estilos universalmente aceites, “criados” e denominados frequentemente pela cultura popular.
Tratando-se de uma tentativa de aplicar uma certa ordem e ciência a uma arte que, como fim, se rebela contra isso, obviamente os estilos musicais e as suas demoninações sofrem frequentes subversões – quer voluntárias, quer involuntárias. Comercialmente, um colectivo como Ulver, cujo passado inclui black metal, folk nórdico, música electrónica de laptop e rock progressivo, tem que continuar a ser “vendido” dentro das prateleiras do metal, porque a sua principal base de fãs está dentro desse estilo – e foi aí que começou – e não “funcionará” nas prateleiras a que cada disco corresponde na realidade em termos estilísticos, quer porque os fãs de metal não os procuram aí, quer porque os habituais frequentadores dessas prateleiras não reconhecem Ulver como um verdadeiro artista desse estilo. O mesmo se passa em termos jornalísticos... se os Cradle Of Filth fizessem este ano uma obra de música contemporânea/clássica, dificilmente seriam levados a sério por um qualquer jornalista especializado em escrever sobre interpretações de Bach, Mozart ou Vivaldi. O mesmo se poderia passar com Ana Malhoa, proeminente personagem da música ligeira portuguesa que, se por qualquer milagre da natureza fizesse hoje uma obra-prima do death metal brutal e técnico, teria sérias dificuldades em ser aceite num meio que se habituou a vê-la do outro lado da barricada estilística. Uma vez “catalogados” dentro de um estilo, os artistas têm sérias dificuldades em sobreviver fora dele porque comercial e estéticamente os estilos são necessários para que exista um mínimo de organização – nem que seja mental – dentro de todo o espectro musical.
Assim, a única forma de olharmos para os estilos musicais – sejam eles quais forem – sem deixarmos que os preconceitos a eles ligados nos toldem a percepção é encará-los como meros marcadores, etiquetas que alguém lhes cola e que, como em tudo, podem estar perfeitamente erradas mas também podem ajudar-nos a organizar a nossa mente em “pilhas”. Se, por exemplo, a diferença entre “heavy” e “power” metal está, actualmente, em pormenores tão pequenos como a produção e a forma como se usa o duplo-bombo da bateria, temos que pensar nos milhares de bandas de cada estilo que se guiam por cada um desses pormenores para criar a sua sonoridade no início de carreira, antes de considerarmos tal categorização ridícula. Depois, quando essa mesma banda evolui e lhe cresce uma alma musical própria, talvez a sua música deixe de poder ser descrita com um termo universalmente reconhecível e aceite e venha a ter dificuldades em libertar-se do seu anterior “rótulo”. Mas essa é uma luta antiga da arte que faz com que os músicos se esforcem ainda mais para que o seu trabalho seja reconhecido por aquilo que verdadeiramente é. E, em última análise, faça desenvolver e evoluír uma arte que, sem inconformismo perante os estilos e terminologia instalados, nunca teria passado daquele drone africano feito com um ramo no tronco de árvore.
Fernando Reis
Em termos jornalísticos, a “catalogação” da música serve o propósito da rápida descrição. A comparação de artistas serve o mesmo propósito, mas demoninar um artista como “artista jazz” envia uma ideia imediata geral ao público-alvo, aos leitores, usando um termo universalmente conhecido e aceite de modo a que, a partir daí, toda a descrição vá no sentido do detalhe. Se falarmos em termos meramente metal, uma banda de metal industrial será consideravelmente diferente de uma que pratique doom metal, mas por exemplo dentro deste último estilo bandas como Witchcraft ou Morgion, sendo geralmente aceite que praticam ambas doom metal, têm sonoridades e identidades musicais bem diferentes.
O mesmo se passa a nível comercial. À medida que as lojas se vão transformando em superfícies maiores, entregues a grandes redes multinacionais como a que opera em Portugal sob o nome de FNAC, torna-se essencial “separar as águas”, de modo a que públicos à partida diametralmente diferentes saibam exactamente onde se encontra a “sua” música. Deste modo, o público que gosta de música clássica tem o seu próprio departamento especializado à disposição, assim como o público que aprecia música étnica, jazz, electrónica, metal ou pop/rock. Os responsáveis pelos diferentes departamentos são diferentes, há editoras especializadas em cada um dos estilos, códigos internos para cada um deles, vendedores e jornalistas que trabalham apenas dentro de cada um desses estilos. Toda uma hierarquização construída com base em estilos universalmente aceites, “criados” e denominados frequentemente pela cultura popular.
Tratando-se de uma tentativa de aplicar uma certa ordem e ciência a uma arte que, como fim, se rebela contra isso, obviamente os estilos musicais e as suas demoninações sofrem frequentes subversões – quer voluntárias, quer involuntárias. Comercialmente, um colectivo como Ulver, cujo passado inclui black metal, folk nórdico, música electrónica de laptop e rock progressivo, tem que continuar a ser “vendido” dentro das prateleiras do metal, porque a sua principal base de fãs está dentro desse estilo – e foi aí que começou – e não “funcionará” nas prateleiras a que cada disco corresponde na realidade em termos estilísticos, quer porque os fãs de metal não os procuram aí, quer porque os habituais frequentadores dessas prateleiras não reconhecem Ulver como um verdadeiro artista desse estilo. O mesmo se passa em termos jornalísticos... se os Cradle Of Filth fizessem este ano uma obra de música contemporânea/clássica, dificilmente seriam levados a sério por um qualquer jornalista especializado em escrever sobre interpretações de Bach, Mozart ou Vivaldi. O mesmo se poderia passar com Ana Malhoa, proeminente personagem da música ligeira portuguesa que, se por qualquer milagre da natureza fizesse hoje uma obra-prima do death metal brutal e técnico, teria sérias dificuldades em ser aceite num meio que se habituou a vê-la do outro lado da barricada estilística. Uma vez “catalogados” dentro de um estilo, os artistas têm sérias dificuldades em sobreviver fora dele porque comercial e estéticamente os estilos são necessários para que exista um mínimo de organização – nem que seja mental – dentro de todo o espectro musical.
Assim, a única forma de olharmos para os estilos musicais – sejam eles quais forem – sem deixarmos que os preconceitos a eles ligados nos toldem a percepção é encará-los como meros marcadores, etiquetas que alguém lhes cola e que, como em tudo, podem estar perfeitamente erradas mas também podem ajudar-nos a organizar a nossa mente em “pilhas”. Se, por exemplo, a diferença entre “heavy” e “power” metal está, actualmente, em pormenores tão pequenos como a produção e a forma como se usa o duplo-bombo da bateria, temos que pensar nos milhares de bandas de cada estilo que se guiam por cada um desses pormenores para criar a sua sonoridade no início de carreira, antes de considerarmos tal categorização ridícula. Depois, quando essa mesma banda evolui e lhe cresce uma alma musical própria, talvez a sua música deixe de poder ser descrita com um termo universalmente reconhecível e aceite e venha a ter dificuldades em libertar-se do seu anterior “rótulo”. Mas essa é uma luta antiga da arte que faz com que os músicos se esforcem ainda mais para que o seu trabalho seja reconhecido por aquilo que verdadeiramente é. E, em última análise, faça desenvolver e evoluír uma arte que, sem inconformismo perante os estilos e terminologia instalados, nunca teria passado daquele drone africano feito com um ramo no tronco de árvore.
Fernando Reis