António Feio - Actor faleceu
O actor e encenador António Feio morreu ontem à noite após um ano e meio de luta contra o cancro. Rodeado pela família e pelos amigos mais próximos, manteve a boa disposição até ao fim. Não deu cabo do bicho, como queria, mas deixou uma lição inigualável de optimismo e de vontade de viver.
"Estou cá para dar cabo do bicho." Foi com estas palavras, ditas em directo na SIC, no dia 23 de Abril de 2009, que o actor e encenador António Feio se referiu pela primeira vez publicamente à doença que o afectava. O bicho, um cancro no pâncreas, tinha lhe sido diagnosticado um mês antes e o actor admitia que o caso era complicado. No entanto, apesar dos tratamentos e dos complicados efeitos secundários, António Feio nunca se recusou a falar da doença (fazia-o frequentemente no Facebook) e fez questão de ter sempre uma palavra de optimismo (até quando a irmã morreu, em Setembro, exactamente com a mesma doença). "Estou preso a um medo de morrer e, ao mesmo tempo, agarrado à esperança de uma cura", diria, em Outubro, numa entrevista a Judite de Sousa, na RTP1.
"O humor tem ajudado e essa é a minha grande arma. Se pudesse, matava o bicho a rir", confessou na mesma entrevista. Não podendo, dispôs-se a viajar ao estrangeiro, a consultar os melhores especialistas, a gastar muito dinheiro. Chegou a deixar de fumar, mas só por algum tempo pois acabou por não resistir ao vício e a um dos seus poucos prazeres nos últimos tempos. Internado há mais de uma semana no Hospital da Luz, em Lisboa, depois de no mês passado ter iniciado mais um ciclo de tratamentos com quimioterapia, António Feio morreu ontem, às 23.25, rodeado pela família e amigos mais próximos. Estiveram lá todos, incluindo os quatro filhos (Sara, Bárbara, Kiki e e Filipe) . "Cheguei ao fim da linha", terá comentado o actor, que manteve a boa disposição até ao fim.
António Feio, 1,80 metros de altura, muito magro, se não fosse actor, seria músico. Tocava guitarra e fê-lo em alguns espectáculos. Ria-se com Seinfeld e recordava até hoje o livro Cem Anos de Solidão, de García Márquez, lido da adolescência. Não sabia cozinhar. Tinha bom feitio. Era "um tipo porreiro". António Feio, o drogado Nando da telenovelas Origens, o encenador de belíssimos espectáculos infantis, o Tóni do colete de pele de vaca, o homem que, com o inseparável amigo José Pedro Gomes e Miguel Guilherme, pôs mais de 80 mil pessoas a ver Arte (1998), uma peça onde se discute a arte abstracta, riu até ao fim de si mesmo. E quem o viu no ano passado nos Contemporâneos , a brincar com a doença e com o facto de Nuno Lopes lhe ter oferecido o Globo de Ouro que acabara de ganhar, não pôde evitar rir-se com ele.
Nasceu em Lourenço Marques em 1954. Aos sete anos, o pai, engenheiro agrónomo, enviou a família para Portugal para que os quatro filhos pudessem prosseguir os estudos. Instalaram-se em Carcavelos. "A minha mãe fazia teatro amador e foi para o Teatro Experimental de Cascais (TEC). Eu ia assistir aos ensaios e quando foi preciso um puto para a peça infantil encenada pela Glicínia Quartim lembraram-se de mim...", contava Feio, embora considerasse que a estreia "a sério" viria a acontecer pouco depois, em O Mar, de Miguel Torga, encenado por Carlos Avilez. "Tinha 12 anos. Na altura havia poucos putos e eu nunca mais parei".
Em 1969, voltou com a família para Moçambique e o teatro ficou relegado para segundo plano. Mas em 1974, o TEC foi a Moçambique e Avilez lembrou-se dele para a digressão. Entusiasmado, António Feio viajou com o grupo para Portugal, decidido a ser actor.
Costumava dizer que entrou na profissão "pela porta do cavalo", sem fazer o conservatório. "Aprendi com os melhores da minha geração." E não se deu mal. Esteve no Adoque com Francisco Nicholson e nos anos 80, confessava-se rendido ao teatro de revista: "Adoro a hipótese de fazer tipões."
Entretanto, a televisão. Foi no Clubíssimo, de Joaquim Letria, que em 1988 António Feio e José Pedro Gomes compuseram, pela primeira vez, uma parelha humorística, com sketches escritos por Nuno Artur Silva. Desde então, a carreira dos dois confunde-se. No Auditório Carlos Paredes, em Benfica, onde Feio dava aulas de representação, estreou-se em 93 Inox - Take 5, depois O Que Diz Molero (94) e, em 97, a primeira A Conversa da Treta. Dali para o Teatro Villaret, no centro de Lisboa, para concretizar o seu projecto: "Senti o tipo de teatro que queria fazer e que ninguém fazia. Um teatro que é entretenimento, mas que também põe a pensar quem o vê", explicaria. Um teatro que tem público e que sobrevive sem subsídios do Estado.
Apesar da doença, encenou recentemente duas peças: Vai-se Andando, com José Pedro Gomes, e Homens de Escabeche, com José Fidalgo e Joana Estrela. Nos últimos meses foi avô, festejou a vitória do Benfica no campeonato e foi condecorado pelo Presidente da República. Dizia que o seu maior defeito é preguiça, e a maior qualidade é persistência. É dessa persistência, no teatro e na vida, que nos iremos lembrar.
Maria João Caetano
"Estou cá para dar cabo do bicho." Foi com estas palavras, ditas em directo na SIC, no dia 23 de Abril de 2009, que o actor e encenador António Feio se referiu pela primeira vez publicamente à doença que o afectava. O bicho, um cancro no pâncreas, tinha lhe sido diagnosticado um mês antes e o actor admitia que o caso era complicado. No entanto, apesar dos tratamentos e dos complicados efeitos secundários, António Feio nunca se recusou a falar da doença (fazia-o frequentemente no Facebook) e fez questão de ter sempre uma palavra de optimismo (até quando a irmã morreu, em Setembro, exactamente com a mesma doença). "Estou preso a um medo de morrer e, ao mesmo tempo, agarrado à esperança de uma cura", diria, em Outubro, numa entrevista a Judite de Sousa, na RTP1.
"O humor tem ajudado e essa é a minha grande arma. Se pudesse, matava o bicho a rir", confessou na mesma entrevista. Não podendo, dispôs-se a viajar ao estrangeiro, a consultar os melhores especialistas, a gastar muito dinheiro. Chegou a deixar de fumar, mas só por algum tempo pois acabou por não resistir ao vício e a um dos seus poucos prazeres nos últimos tempos. Internado há mais de uma semana no Hospital da Luz, em Lisboa, depois de no mês passado ter iniciado mais um ciclo de tratamentos com quimioterapia, António Feio morreu ontem, às 23.25, rodeado pela família e amigos mais próximos. Estiveram lá todos, incluindo os quatro filhos (Sara, Bárbara, Kiki e e Filipe) . "Cheguei ao fim da linha", terá comentado o actor, que manteve a boa disposição até ao fim.
António Feio, 1,80 metros de altura, muito magro, se não fosse actor, seria músico. Tocava guitarra e fê-lo em alguns espectáculos. Ria-se com Seinfeld e recordava até hoje o livro Cem Anos de Solidão, de García Márquez, lido da adolescência. Não sabia cozinhar. Tinha bom feitio. Era "um tipo porreiro". António Feio, o drogado Nando da telenovelas Origens, o encenador de belíssimos espectáculos infantis, o Tóni do colete de pele de vaca, o homem que, com o inseparável amigo José Pedro Gomes e Miguel Guilherme, pôs mais de 80 mil pessoas a ver Arte (1998), uma peça onde se discute a arte abstracta, riu até ao fim de si mesmo. E quem o viu no ano passado nos Contemporâneos , a brincar com a doença e com o facto de Nuno Lopes lhe ter oferecido o Globo de Ouro que acabara de ganhar, não pôde evitar rir-se com ele.
Nasceu em Lourenço Marques em 1954. Aos sete anos, o pai, engenheiro agrónomo, enviou a família para Portugal para que os quatro filhos pudessem prosseguir os estudos. Instalaram-se em Carcavelos. "A minha mãe fazia teatro amador e foi para o Teatro Experimental de Cascais (TEC). Eu ia assistir aos ensaios e quando foi preciso um puto para a peça infantil encenada pela Glicínia Quartim lembraram-se de mim...", contava Feio, embora considerasse que a estreia "a sério" viria a acontecer pouco depois, em O Mar, de Miguel Torga, encenado por Carlos Avilez. "Tinha 12 anos. Na altura havia poucos putos e eu nunca mais parei".
Em 1969, voltou com a família para Moçambique e o teatro ficou relegado para segundo plano. Mas em 1974, o TEC foi a Moçambique e Avilez lembrou-se dele para a digressão. Entusiasmado, António Feio viajou com o grupo para Portugal, decidido a ser actor.
Costumava dizer que entrou na profissão "pela porta do cavalo", sem fazer o conservatório. "Aprendi com os melhores da minha geração." E não se deu mal. Esteve no Adoque com Francisco Nicholson e nos anos 80, confessava-se rendido ao teatro de revista: "Adoro a hipótese de fazer tipões."
Entretanto, a televisão. Foi no Clubíssimo, de Joaquim Letria, que em 1988 António Feio e José Pedro Gomes compuseram, pela primeira vez, uma parelha humorística, com sketches escritos por Nuno Artur Silva. Desde então, a carreira dos dois confunde-se. No Auditório Carlos Paredes, em Benfica, onde Feio dava aulas de representação, estreou-se em 93 Inox - Take 5, depois O Que Diz Molero (94) e, em 97, a primeira A Conversa da Treta. Dali para o Teatro Villaret, no centro de Lisboa, para concretizar o seu projecto: "Senti o tipo de teatro que queria fazer e que ninguém fazia. Um teatro que é entretenimento, mas que também põe a pensar quem o vê", explicaria. Um teatro que tem público e que sobrevive sem subsídios do Estado.
Apesar da doença, encenou recentemente duas peças: Vai-se Andando, com José Pedro Gomes, e Homens de Escabeche, com José Fidalgo e Joana Estrela. Nos últimos meses foi avô, festejou a vitória do Benfica no campeonato e foi condecorado pelo Presidente da República. Dizia que o seu maior defeito é preguiça, e a maior qualidade é persistência. É dessa persistência, no teatro e na vida, que nos iremos lembrar.
Maria João Caetano
in Diário de Notícias