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Como o Estado esbanja dinheiro

O Estado português gastou desde 2008, em plena crise económica, 331.200 euros em concertos de Tony Carreira e pagou 114 mil euros por uma cerimónia de três horas para atribuir prémios a pequenas e médias empresas. A Câmara Municipal do Funchal deu 111.115 euros para cobrir as despesas dos figurantes e do catering para uma telenovela a ser filmada na Madeira. Outra autarquia, a de Matosinhos, usou 16.725 euros para oferecer canetas e salvas de prata. E José Sócrates também se está a sentir generoso: em 2006 o seu gabinete tinha gasto 219 mil euros em comunicações móveis; este ano pagou 63 mil euros em flores naturais para a sua residência oficial, mais 43.800 euros do que em 2009.

"Moralmente, essas pequenas despesas devem ser atacadas, mesmo que financeiramente não representem muito", diz o fiscalista Medina Carreira, que ainda se lembra de que quando foi ministro, entre 1976 e 1978, usou um carro recuperado das Alfândegas (tinha sido apreendido) para poupar, "apesar de o País não estar financeiramente tão mal como agora". Hoje, avalia, "somos um país de mendigos e as entidades públicas têm carros dignos da Arábia Saudita".

Todo o Estado devia ouvir esta crítica: em 2008, consumiu 90,8 milhões de euros em combustível, segundo a Conta Geral do Estado, para utilizar os seus 29 mil carros. Agora, serão 29.006: em 2009 e 2010, o Banco de Portugal pagou à BMW mais de 210 mil euros por seis veículos. Lá fora, as coisas estão a mudar. Em Itália, o ministro das Reformas da Administração Pública, Renato Brunetta, anunciou um plano para cortar na frota automóvel do Estado, nomeadamente nos muitos Maserati que a compõem. E o primeiro-ministro britânico, David Cameron, foi mais arrojado: os ministros deixarão de ter motorista e carros oficiais, salvo em circunstâncias muito excepcionais. Alternativa: devem andar a pé, usar os transportes públicos ou carros de serviço. A poupança esperada é de 3,2 milhões de euros - um terço dos 9,6 milhões que se gastam por ano em pessoal e frota automóvel. Só o próprio Cameron e mais três ministros ficam isentos desta regra. Em Portugal, o gabinete de José Sócrates tem ao seu serviço 12 motoristas.

O economista António Nogueira Leite, conselheiro de Passos Coelho responsável pela negociação do plano de austeridade com o governo, diz que "há uma longa tradição de pequenas despesas supérfluas e um certo preconceito contra quem as critica: ou é porque se quer privilegiar os privados ou atacar o emprego". O facto de o Estado ter gastado em café, desde 2008, 208.103 mil euros pode não representar muito no Orçamento, mas é um sinal. "Não é neste tipo de despesas que vamos poupar muito, mas cortar aí mostra uma intenção", assinala Bagão Félix, antigo ministro das Finanças e da Segurança Social pelo CDS-PP.

Cortar na despesa tem sido a sugestão de vários economistas e políticos, de agências internacionais como o FMI e do Conselho Económico e Social português. Este organismo chegou a dizer em Fevereiro que a despesa estimada pelo Orçamento do Estado para 2010 revela que "não houve combate ao desperdício". E deixou uma sugestão de corte: "Gastos em estudos e pareceres encomendados a empresas de consultoria ou sociedades de advogados."

"Pagar a um escritório de advogados 476 mil euros por um trabalho de uma semana [para o Taguspark, feito pela PLMJ de José Miguel Júdice] é a ponta do icebergue do que o Estado gasta com auditores e escritórios de advogados. São milhões e milhões", defendeu Miguel Relvas, porta-voz do PSD. E são mesmo. Em 2010, o Estado espera gastar 189,2 milhões de euros (quase mais 22 milhões do que no ano passado) em estudos, pareceres, projectos e consultoria, apesar de todos os ministérios, secretarias de Estado e direcções gerais disporem de assessores e serviços jurídicos.

Uma só sociedade de advogados, a Sérvulo Correia, recebeu, de acordo com o semanário Sol, 4,2 milhões de euros de um total de 15,7 milhões gastos pelos vários governos em advogados entre 2003 e 2006. E, desde 2008, por ajuste directo, a sociedade já recebeu mais 4,055 milhões. Foi esta a sociedade de advogados que, por exemplo, assessorou o Estado português no concurso para aquisição de submarinos.

A PLMJ, outro escritório com peso nos serviços prestados ao Estado, recebeu 1 milhão de euros num só ano, em 2006. O chamado outsourcing de serviços jurídicos é, em regra, acordado por ajuste directo, ou seja, não passa por concurso público. E isso também acontece para outros tipos de estudos.

São trabalhos que, em alguns casos, poderiam ser feitos pelos funcionários públicos: os inspectores do Ministério da Educação afirmaram no início de Maio que poderiam ter feito o estudo para avaliar o impacto das Novas Oportunidades, encomendado à Universidade Católica e que custou 297.900 euros. Pelo conjunto dos trabalhos realizados para o Estado entre 2008 e 2009, a universidade recebeu 1.346.034 euros.

Pedem-se pareceres e muitos estudos. Nos últimos 12 anos fizeram-se 114 sobre o novo aeroporto e só em 2009 gastaram-se neste assunto 9,2 milhões. Um dos estudos mais caros foi o relatório de impacto ambiental feito pela DHV, empresa de origem holandesa e cujo presidente da SGPS em Portugal é Carmona Rodrigues, ex-autarca de Lisboa: custou 817 mil euros. No TGV aconteceu a mesma coisa: de 2001 a 2008, os estudos para as várias versões possíveis custaram 92,9 milhões de euros. Agora, o aeroporto foi adiado e o TGV também, com excepção do troço Poceirão-Caia.

Nos últimos dias, a SÁBADO fez um pequeno levantamento de algumas pequenas despesas onde o dinheiro dos impostos é esbanjado. São apenas exemplos - existem muitas outras. O Estado poderia ter poupado nos 117.085,18 euros pagos por seis autarquias à loja de brinquedos Toys "R" Us; ou nos 52 mil euros que a Universidade do Algarve gasta por ano em passagens aéreas, uma delas com o trajecto Faro-Lisboa-Londres-Miami-Belize-Miami-Londres-Lisboa-Faro (1.634,18 euros) e outra com Porto-Nagóia-Xangai-Nagóia-Porto (1.710 euros). Em brindes, o Estado português gastou, desde 2008, 1.225.093 euros. Houve 5.500 euros para guarda-chuvas e 10 mil euros para T-shirts e rebuçados.

Há mais. O secretário de Estado do Comércio, Fernando Serrasqueiro, limpou dois tapetes de Arraiolos por 2.179 euros; a autarquia de Gondomar gastou 16.696 euros em flores e pagou 515 mil euros em publicidade ao Gondomar Sport Clube; a Câmara de Lisboa gastou 9.784 euros em vestuário de cerimónia para os funcionários dos cemitérios. Em Oeiras, as bolas e leques Oeiras Somos Todos ficaram em 7.650 euros; Sines gastou 6.075 euros em búzios de cristal e em vidro colorido.

Apesar da crise, continuou a haver festas. As decorações, luzes e outras despesas de Natal custaram 6.830.233 euros em 2008 e 6.133.935 euros no ano passado. Cascais gastou 21 mil euros em bolos-reis para oferecer aos funcionários. Loulé preferiu o Carnaval: pagou 6.960 euros por uma encomenda de rebuçados em 2009 e 73.125 euros em almofadas anti-stresse de arremesso para o Carnaval de Verão do mesmo ano.

Outros optaram pela música. Desde 2008, o Estado gastou 3.810.661 euros em concertos. O cantor de ópera espanhol José Carreras foi quem saiu mais caro: a Câmara de Santarém pagou 263.200 euros ao tenor em Julho de 2009. O menos erudito Quim Barreiros também teve anos bons: em 2009 e 2010 facturou aos contribuintes portugueses 256.303 euros. O romântico Tony Carreira, de quem Manuel Pinho era fã (até actuou na inauguração da avenida, em Paços de Ferreira, com o nome do ex-ministro da Economia), contabilizou 331.200 euros. O cantor manteve uma estreita colaboração com o antigo ministro e participou em eventos pela promoção das energias renováveis patrocinados pelo Governo.

Só em festas, na esmagadora maioria promovidas por autarquias, gastaram-se mais de 4 milhões de euros desde 2008. Com rigor: 4.324.163,13. Os festejos foram os mais variados: festa do leitão, da sardinha, das flores, do fado ou do emigrante. Estes dados estão disponíveis no site transparência-pt.org, onde desde 2008 são agrupados os dados sobre ajustes directos que o Estado é obrigado a publicar. Os concursos públicos não estão abrangidos.

Medina Carreira defende que, nas câmaras municipais, até se podia economizar na própria estrutura: "Temos um mapa autárquico do século XIX, do tempo em que se andava de carroça de um concelho para outro. Não faz sentido ter 308 municípios, metade chegava. O mesmo para as freguesias. Em vez de mais de quatro mil, deveríamos ter duas mil." Barcelos, por exemplo, tem 122 mil habitantes e 89 freguesias. Lisboa, com 564 mil habitantes, tem apenas 53.

O social-democrata Nogueira Leite aponta outros exemplos de desperdício na administração. Na semana passada, sugeriu que três institutos reguladores que tratam áreas relacionadas entre si e que deveriam articular-se passassem a um só, poupando assim muito dinheiro: o Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres (89.747.978 de euros de orçamento para 2010), o Instituto de Infra-estruturas Rodoviárias (7.380.000 de euros) e o Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos (65.523.031 de euros).

As empresas municipais também são clássicos do excesso de despesa - o líder do CDS, Paulo Portas, lembrou no fim-de-semana passado que elas empregam dois mil gestores. Em Itália, o Governo vai cortar 4,9 mil milhões de euros nas despesas com as empresas municipais.

Há ainda as obras cujos custos derrapam sistematicamente. O Tribunal de Contas (TC) chamou recentemente a atenção para os 241 milhões de euros perdidos em apenas cinco delas e que resultaram de "ineficiências, falhas e erros de gestão", defeitos no projecto inicial ou pedidos de trabalhos adicionais. Guilherme d'Oliveira Martins, presidente do TC, já dizia em 2008 que "há desperdício" na governação e "muitas infra-estruturas construídas para ninguém". Um exemplo é o viaduto inacabado de Vila Franca de Xira, que termina numa encosta e vai dar a lado nenhum. A construção terá custado perto de 2 milhões de euros pagos quase na totalidade pelo construtor (José Maria Duarte Júnior) e uma pequena parcela pela autarquia. A Câmara quer agora gastar mais 100 mil euros - para o demolir.

Alguns hábitos de despesa pioraram com o tempo. Os economistas ouvidos pela SÁBADO apontam em comum o facto de o Estado se ter habituado a gastar nas pequenas despesas do dia-a-dia, sem fazer contas. Jacinto Nunes, ex-ministro das Finanças e ex-governador do Banco de Portugal, lembra que no seu gabinete de ministro, em 1978 e 1979, tinha apenas seis assessores. Hoje, Teixeira dos Santos tem cinco adjuntos e quatro assessores.

Não é preciso recuar tanto. Nos anos 90, António Guterres tentou instituir a regra de que houvesse apenas um assessor de imprensa por ministério. Actualmente, com José Sócrates, nenhum tem menos de dois. Os Ministérios da Justiça, de Alberto Martins, e da Saúde, de Ana Jorge, somam quatro cada um. O Governo tem pelos menos 40 pessoas a funcionar como assessores de imprensa, com ordenados a variar entre os 2.400 e os 4.500 euros brutos, mais despesas de representação (em média, cerca de 20% da remuneração), ajudas de custo (58 euros por dia) e subsídio de refeição. No seu todo, o Estado gasta em despesas de representação 20,6 milhões de euros por ano; em ajudas de custo, 72,1 milhões; em representação dos serviços, 4,8 milhões; em deslocações e estadias, 63,6 milhões; e em transportes, 52,8 milhões.

Outro gasto que evoluiu foi o das despesas com apresentações mediáticas de medidas e inaugurações, muitas vezes com recurso a serviços exteriores profissionalizados. Para as cerca de três horas de cerimónia da PME Excelência, em Julho de 2009, o IAPMEI (Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas e à Inovação) gastou 144.172,20 euros. A factura mais cara foi a do equipamento audiovisual (mais de 30 mil euros), mas houve outras: os troféus, por exemplo, custaram 22 mil euros - eram 375 empresas premiadas. Só com cerimónias de inauguração o Estado gastou, por ajuste directo, pelo menos 677.680 euros desde 2008.

Os famosos eventos de lançamento de auto-estradas do ministro das Obras Públicas Mário Lino geraram polémica. O Governo desmentiu que cada acção tivesse custado 500 mil euros, como chegou a ser avançado pelo semanário Sol, mas uma fonte da Estradas de Portugal chegou a reconhecer à SÁBADO que só o orçamento de comunicação da auto-estrada do Litoral Oeste terá sido de 260 mil euros. O aluguer da tenda terá custado entre 50 e 60 mil euros. Mais o catering para 120 a 150 convidados e os filme promocionais. Mário Lino afirmou que quem pagava eram as concessionárias, e não o Executivo, mas a oposição explicou que elas obviamente fariam repercutir estes custos nos seus orçamentos.

Não é só o Governo a gastar em festas e comemorações. Este ano, Jaime Gama, presidente da Assembleia da República, queria pagar 60 mil euros por uma peça de teatro que assinalasse o centenário da República. A sugestão foi chumbada pelos deputados (com os votos a favor das bancadas do PCP e do Bloco de Esquerda). Mas o Parlamento já tinha pago, em 2008, 6.200 euros por uma outra peça de teatro, A Casa das Luzes - da Fé à Razão, encenada por Maria do Céu Guerra. E o orçamento da Assembleia para 2010 cresce em quase todos os itens. Nas viagens, são mais 708.000 euros, 25% acima de 2009. O total de 191,4 milhões para este ano é sete milhões de euros superior ao último orçamento.

As grandes despesas do Estado são com pessoal e prestações sociais. Vencimentos, subsídios, apoios, reformas e juros representam cerca de 90% do total. O antigo ministro das Finanças Miguel Beleza diz "que o resto são alfinetes". E mexer na despesa implica fazer mais do que cortar nos alfinetes. O FMI, por exemplo, sugeriu cortes nas prestações sociais (que são 37 mil milhões de euros, cerca de metade do Orçamento português em 2010) e nos funcionários públicos (que representam 23% dos gastos). A Irlanda pôs esta medida em prática. Medina Carreira já não acredita que os portugueses, que nem nas pequenas despesas poupam, consigam fazê-lo sozinhos: "Defendo a vinda do FMI. Já. Não gosto, mas que haja alguém que nos salve."

De facto, na administração pública, o muito que se gasta parece não chegar. Este ano irá contratar externamente 110 milhões de euros em assistência técnica, 91,6 milhões em vigilância a segurança, 35,4 milhões com pessoal em regime de tarefa ou avença e 384,3 milhões em pessoal contratado a termo. Estas pessoas, mais os restantes funcionários públicos, implicaram um gasto anual de 30 mil euros de garrafões de água no ano passado.

No princípio de Maio, a direcção-geral de Administração da Justiça deu indicações escritas aos serviços e tribunais proibindo-os de renovar os contratos para aluguer de máquinas de refrigeração e fornecimento de água. No Ministério da Saúde, as garrafas de água serão substituídas por um jarro. Não são conhecidos exemplos de outros ministérios ou direcções gerais que tenham seguido estas orientações.

O Estado não gasta só em água. A Câmara de Loures, por exemplo, comprou 7.278,6 euros de espumante em 2010. O Estado pagou um total de 13.532 euros de espumante desde o ano passado. E o regimento de transmissões do Exército adquiriu 4.200 euros de whisky novo.

E uma vez que, em cerca de dois anos, o Estado gastou já 1.622.513 euros em esculturas (a mais cara custou 132 mil euros à Câmara de Chaves) talvez ainda alguém se lembre de fazer um monumento ao desperdício. Tudo o mais, pelos vistos, já deve ter sido feito em forma de estátua.

Maria Henrique Espada e Patrícia Silva Alves
in Revista SÁBADO

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