Review - "Tabu" (Miguel Gomes)
"TABU"
Crocodilo Dandy ou Oscar pouco Wilde
Em ano em que a Secretaria de Estado da Cultura anunciou o
cancelamento de todos os apoios financeiros para as produções cinematográficas,
já está em sala “Tabu”, obra de Miguel Gomes pós-o-ovni “Aquele Mês de Agosto”,
guindada por um tsunami de aclamação um pouco por toda a parte, leia-se, toda a
parte que interessa para a afirmação do sucesso de um filme. Mas os prémios,
ovações e elogios escritos não fazem por si só uma longa-metragem, e “Tabu”,
como o jovem crocodilo ferido de spleen,
que, à mínima ocasião, se põe a andar em fuga do que o oprime, cumpre um
extravagante plano de evasão. Isto é, um esqueleto bipartido sobre o qual, com
mão de exímio alfaiate, Miguel Gomes faz assentar fato janota
mais-clássico-não-há, propenso a ambientes de sentimentos melodramáticos - os
que se devem levar muito a sério, segundo Fassbinder. E “Tabu” não foge à
lágrima (de saudade, de separação, de solidão, até de tédio). Propõe-nos o cineasta
um périplo pela memória cinéfila, intitulando a primeira e segunda partes, “Paraíso”
e “Paraíso Perdido”. Tanto estas como o título roubam/homenageiam a obra maior
homónima de 1931 do alemão Franz Murnau.
Mas vamos à história, que nasceu de uma outra banalíssima de vizinhança envolvendo uma familiar do cineasta, que lhe contou uma história de uma vizinha idosa que fazia coisas terríveis, que nunca se vieram a comprovar.
Depois de um preâmbulo em que pela
voz-guia do próprio Gomes, antes da parte lisboeta e contemporânea, ficamos a
saber que, por males de amor, um explorador de uma África, emprestou a alma a
um crocodilo, desse dia até sempre, melancólico observador do resto de uma
história em que diversos crocodilos marcam presença.
Passamos a Lisboa e à religiosa e contestatária Pilar, cujo único amigo homem é
um pintor de mão bruta e alma sensível, vizinha de Aurora, uma velhota cuja
saúde mental parece delir-se entre sonhos com macacos peludos e aventuras no
casino, que acusa sua criada, Santa, de fazer macumbas contra ela. Já no leito
da morte, ela clama pelo Sr. Ventura, encontrado por Pilar, após muito esforço.
O velhote passa então a contar quem é e como conheceu Aurora.
Como ex-crítico profissional do seu actual métier, Gomes tem uma memória eidética dos códigos cinematográficos
(o filme mudo, o de época,) em que se move, capaz de se lembrar de cenas e sons
com um grau de detalhe quase perfeito. Mas o seu trabalho não se cinge
meramente enquanto satélite reflectindo o fulgor de outros tempos; é astro que
detém brilho próprio. Muitos diriam astro-rei, mas não usemos o cárcere da
adjectivação, por muito que seja elogiosamente devida, para espartilharmos este
universo em expansão. Sob o pano da selva africana, da cidade lisboeta, de uma
história de amor condenado, esconde-se e foge, como um crocodilo. “Tabu” evoca
mas não é saudosista, é uma lágrima que cai por um passado radioso, enquanto o
corpo insiste em mover-se adiante, Sísifo carregando a pedra da memória do
cinema, rumo ao Monte Tabu e depois deste. “Tabu” é como nós: um fractal do
universo que olha para dentro de si mesmo. Um filme fantasma de si próprio. E
eco de nós. Como se ouve no início, é um filme feito com “o coração, o mais
insolente dos órgãos”.
Concluindo, “Tabu” é um objecto ingavetável que, porém, merecia melhor sorte na escolha do seu som (mal
endémico do cinema de origem lusa) e narrador: a voz de Gomes não está talhada
para a tarefa.
Bruno Sousa Villar