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Estar presente mas ausente

Muito longe de geek, sou no entanto um fervoroso adepto das novas tecnologias. A evolução que proporcionaram nas últimas três décadas em todas as dimensões da vida em sociedade mudou radicalmente a forma como negociamos, estudamos, comunicamos, trabalhamos, nos divertimos e fazemos tudo o resto, oferecendo-nos benefícios incomensuráveis. Sem elas, hoje viveríamos num estádio de subdesenvolvimento inimaginável.

Mas às novas tecnologias vieram associadas as inevitáveis perversões decorrentes da inovação. Uma delas - das mais inócuas do ponto de vista do utilizador mas não menos irritantes – é o uso desregrado nos concertos de telemóveis, iPads, câmaras de vídeo, máquinas fotográficas, smartphones, gravadores áudio, entre outros gadgets que permitem captar imagem e som.

O fenómeno expressa-se com tal intensidade que hoje muitos não assistem aos concertos pelos espetáculos em si. Não vão senti-los, usufruir deles ao máximo e passar um bom bocado, cantando os temas, fazendo mosh e headbanging, gritando e batendo palmas. Não se entregam minimamente ao espetáculo, não participam nele com sentimento, paixão e emoção, como dantes acontecia. Estes “fãs” (nem são dignos desse nome, daí as aspas), amadores que gostam de se intitular profissionais ou semiprofissionais, deslocam-se aos concertos meramente para registar o audiovisual dos mesmos. Competem impiedosamente entre si para serem os primeiros a disponibilizar no Youtube e nas plataformas análogas as suas gravações.

Os registos com melhor enquadramento e qualidade audiovisual são os mais vistos e divulgados, o que se traduz em estatuto e respeito adquiridos pelos seus autores. Com sorte, se as visualizações superarem “x” número (não estou certo qual, mas na ordem dos milhões), a reboque do estatuto vêm cheques emitidos pelo Youtube, com o pagamento respeitante a esses hits.

Noutros casos, os autores dessas captações limitam-se a aumentar a imensa lista disponível de itens para troca com fanáticos de todo o mundo, qual tape-tradding moderno. No limite, transformam essa lista num catálogo a partir do qual os fãs selecionam as gravações-pirata que mais lhes interessam, encomendando-as. Alguns dos seus autores ganham assim pequenas fortunas, à semelhança do que se fazia nos anos 80 e 90 com as cassetes VHS e áudio, embora em muito menor escala (na época, a tecnologia disponível era em quantidade muito inferior e o seu preço menos acessível).

Mesmo que o objetivo desses “fãs” não vá para além de enriquecer o seu arquivo privado de itens pirata para consumo próprio, o exagero vai ao ponto de se focarem durante todo o concerto única e exclusivamente nas gravações que efetuam. No espetáculo dos W.A.S.P. a 10 de novembro no Campo Pequeno, em Lisboa, fiquei no nível mais baixo das bancadas do recinto, de frente para o palco. À minha esquerda encontrava-se um rapaz que durante todo o tempo esteve curvado a olhar para o visor da câmara de filmar, controlando a gravação ao segundo. Ou seja, assistiu a todos os concertos (foram quatro as bandas em palco) através do ecrã da câmara.

Nunca vi nada assim e nem consigo entender esta forma de agir. Compreendo que as pessoas gostem de possuir registos audiovisuais e/ou fotográficos dos concertos. Afinal, revelam-se documentos preciosos que ficam para a posteridade. Contudo, resumir toda a experiência que um espetáculo proporciona à obsessão de efetuar boas captações parece-me estúpido e ridículo, mesmo que disso dependa o respeito que estes “autores” buscam entre os seus pares. Estão presentes física mas não espiritualmente nos eventos. Rebaixam-se à condição de autómatos, sem qualquer emoção.

Reportando-me ainda ao concerto dos W.A.S.P., ao meu lado direito sentou-se alguém que pousou a máquina fotográfica no muro a filmar todo o concerto. Colocou ainda ao pescoço o habitual gravador áudio com que regista todos os eventos a que se desloca. Havia por todo o lado gente a gravar e a fotografar com telemóveis e outros dispositivos. Esta obsessão em registar os concertos adia a gratificação de lhes assistir, já não ao vivo mas em diferido. É um paradoxo, deslocarmo-nos a um evento para dele usufruir apenas (e não de novo) em casa. Estes fãs não gozam, voluntariamente, daquele momento único e irrepetível. Podem revê-lo, a posteriori, quantas vezes entenderem, mas já não estão lá, in loco. Esse momento já pertence ao passado. Aliás, muitas vezes só vêem ou ouvem o espetáculo vários meses após a realização. Para quê então o esforço? Qual o sentido de tudo isto?

Deixem-me gritar!
Quem vê os concertos ladeado por fãs artilhados com dispositivos de captação não goza da certamente da melhor experiência. Sei do que falo. Confesso que hoje, nos espetáculos, me sinto intimidado ao exprimir toda a minha emoção, seja a cantar os temas, a gritar a plenos pulmões no fim dos mesmos ou simplesmente a bater palmas, não vão as minhas ruidosas manifestações de júbilo estragar a gravação do “vizinho” do lado. Sim, o fenómeno chegou a este grau de ridículo. Pensar algo como “se gritar ainda estrago a gravação deste gajo” ou “não vou cantar o refrão porque a minha voz é capaz de se sobrepor ao resto e ele fica com a captação estragada” é uma realidade com que me confrontei em todos os concertos a que assisti nos últimos anos.

É ridículo, absurdo e redutor da minha liberdade e da de todos quantos desejem exprimir-se num espetáculo sem restrições, condicionalismos, receios ou vergonhas só porque alguém está a gravar. Algumas vezes remeto-me ao silêncio, outras não abdico do direito de me expressar como bem entender, gostem ou não, fiquem ou não com as captações estragadas. Não quero saber. Não me diz respeito. Estupidamente, neste processo, os autores das gravações limitam também a sua própria liberdade e não apenas a de terceiros, reprimindo as suas manifestações espontâneas de alegria. Eis um belíssimo tema de investigação no âmbito psicossociológico.

Tudo isto se traduz numa enorme desilusão face à atual qualidade do público português, outrora considerado um dos melhores do mundo, sem demagogia. Era-o mesmo. No entanto, o calor da receção às bandas em Portugal é hoje insipiente, mesmo ridículo, pois os fãs estão mais interessados em gravar os concertos do que senti-los. Acresce também a excessiva oferta de espetáculos, o que refreia o ímpeto emocional dos fãs nos mesmos. Chegámos ao ponto de Blackie Lawless, vocalista e guitarrista dos W.A.S.P., a dada altura afirmar, no concerto de Lisboa, “let’s get some audience enthusiasm”. Esta frase representa bem a profunda apatia em que o público luso mergulhou, mesmo na receção a um grupo há 15 ausente dos nossos palcos. Vergonhoso! 

Dico 

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