Entrevista For The Glory
REALIDADE DESMONTADA
"Em alturas de crise ou crispação social, a criatividade é muito
maior"
Dez anos se passaram em "pezinhos de lã". Não que não se
tivessem feito ouvir bem alto em muitos palcos pelo país fora, mas porque o
respeito dos fãs fez deles - muito discretamente - um dos colectivos mais
importantes do cenário alternativo nacional. Lisboetas, os For The Glory
continuam a justificar a sua "missão na Terra" através da sua
mensagem urbana e crua, assente nos episódios quotidianos mais palpáveis que
possam imaginar. E o seu quarto longa-duração, "Lisbon Blues", é isso
mesmo - uma celebração das vivências nas grandes urbes e, acima de tudo, a
figuração da indiferença e frieza dos seus cidadãos. Absorvendo esse clima, este
regresso é mais impiedoso mas há sempre hipótese de reverter as situações
negativas - com atitude, como refere o vocalista Ricardo Dias.
O actual estado de convulsão social e económica que se vive, não só em
Portugal, foi motivador de razões mais do que suficientes para criarem um disco
e transmitirem uma mensagem? Foi tudo mais fácil por causa desse cenário?
Enquanto banda, o nosso objectivo é sempre colocar na música as nossas ideias.
Acreditamos que a música é um veículo que pode quebrar barreiras e isso faz com
que a mensagem seja mais fácil de transmitir. Em alturas de crise ou crispação
social, a criatividade é muito maior. As pessoas querem partilhar as suas
frustrações e os seus problemas, pois existe tanta gente que se relaciona com
estes assuntos. A música ou qualquer outra forma de arte é o refúgio para
muitos de nós e aproveitamos para colocar tanto de nós na mesma. O que metemos
na música e nas letras deste disco deu origem a um registo mais pesado, mais
duro, mais frio... talvez por causa dos sinais dos tempos em que vivemos.
Será que ao fim de dez anos de carreira conseguiram modificar, pelo menos, um pouco do mundo à vossa volta através da vossa música e mensagem?
Se conseguirmos colocar as pessoas a questionar, a partilhar algumas palavras
que poderão ou não levar à mudança do indivíduo com quem falamos, se tudo isto
for realizado, então o nosso propósito enquanto veículo de transmissão foi
alcançado.
Uma década é, de certo, um tempo considerável. Sentem que atingiram os
objectivos a que se propuseram ou a ideia foi sempre ir vivendo o dia-a-dia?
A banda não tinha, nem tem objectivos concretos traçados. Digamos que esta
banda acompanhou alguns de nós desde os 21 aos 31, ou seja há muita coisa que
se passou e que se passa que nos moldou como as pessoas que somos hoje. Nessas
mudanças todas, a banda esteve sempre presente e isso é algo muito
gratificante. No entanto, apesar de levarmos uma cena mais descontraída, temos
aqueles mínimos necessários para o seu bom funcionamento. Ainda há coisas que
queremos fazer, se pudermos e se nos deixarem. Quando deixar de fazer sentido
ter esta banda porque não nos damos ou se tornou num trabalho, aí acabamos,
pois já não faz sentido.
De que forma a experiência acumulada ao longo desses anos foi importante
para a composição de "Lisbon Blues"? Como é que se comportam hoje na
sala de ensaio ou no estúdio? Há menos preocupação ou o know-how torna,
ao contrário, tudo mais tenso pela necessidade de atingirem a perfeição?
Talvez agora conheçamos melhor métodos de trabalho, ferramentas, etc., mas, por
exemplo, o nosso primeiro disco foi gravado sem click, os outros com click
e este disco foi gravado no registo "feeling" - sem click,
sem a pressão dos quantos bpm é que esta ou aquela malha tem, mas sim sentindo
a velocidade que fazia sentido. Foi natural o processo de harmonização das
várias peças. Claro que tivemos a ajuda do Jacob Bredahl e também do Paulo
Basílio que foram importantes para que não nos perdêssemos em cenas sem
sentido. Nota-se que crescemos um pouco em estúdio, o que torna o seu
desconforto em algo mais agradável. Foi uma excelente experiência.
Como é que devemos olhar para este disco dentro da vossa discografia?
O mais equilibrado em termos de peso/raiva e balanço?
Penso que é, sem dúvida, um disco que reflecte bem o estado de espírito da
banda e também dos tempos em que vivemos. Talvez seja o mais pesado, tem um
pouco de tudo. Mas é, indubitavelmente, uma junção de tudo o que os For The
Glory fizeram ao longo dos anos. Talvez por estarmos mais à vontade nos dias de
hoje a fazer hardcore, sentimos que este disco é um mix dos gostos de
todos na banda. Estou completamente satisfeito com tudo neste disco. É um
espelho dos dias de hoje, como referi. Se o estilo de vida de hoje é mais
agressivo, o nosso input nas malhas também o é. É um disco que revela
mais maturidade.
"Lisbon Blues" é um título forte. Terá este disco um
sentimento particularmente patriótico?
Não, até porque a minha pátria não é Lisboa. Poderia ser um regionalismo, mas
nem isso. [risos] Basicamente, o título em si nem deixa assim grande espaço
para se pensar que é sobre vangloriar esta cidade, mas quando se lê a letra
percebe-se que a faixa-título é sobre mostrar um lado de uma cidade grande que
muitos não gostam de mostrar ou tentam fazer com que passe despercebido.
Que frase escolheria para melhor representar este trabalho? Pode ser um verso das letras...
“Cut the strings, rebel and fight.”
Muito concretamente, como foram aqueles momentos de escrita em que tinha que
ir à procura de inspiração? Imaginou muitas cenas observadas na capital? A
título de exemplo, "Lisbon Blues" fala de um pai que deixa de lutar e
que morre deixando uma filha. Isso é tudo uma abordagem metafórica ou as letras
falam efectivamente de episódios autênticos?
A letra de "Lisbon Blues" fala sobre a falta de esperança, sobre o pai
que deixou de acreditar que poderia ter um futuro, fala sobre as pessoas que
carregam a expressão de uma vida dura passada a trabalhar para não terem nada,
não serem reconhecidas... aliás até passarem despercebidas ao ponto de serem
rapidamente esquecidas. A cidade tem esse lado negro, o lado da indiferença.
Numa cidade grande tudo é rápido e olhamos para o nosso umbigo. Não nos
preocupamos se o vizinho do lado (do qual nem sequer sabemos o nome) ficou
desempregado, se o velhote que mora na casa ao fim da rua e está sozinho, se
consegue pagar as contas e ter os medicamentos que precisa ou simplesmente ter
alguém para falar. A cidade grande é negra e é sobre essa cidade que irei falar,
nunca sobre a cidade dos postais para turistas. Todas as nossas letras
reflectem assuntos que achamos que devem ser importantes e se os temas são mais
pesados, as letras tornam-se invariavelmente mais pesadas.
Depois de largos anos de intenso corrupio por estradas e palcos nacionais e
estrangeiros, que conclusões tiram das duas realidades? Somos efectivamente
menos evoluídos enquanto público e pessoas em geral?
Até discordo, temos actualmente das melhores bandas nos vários estilos musicais
em que estamos inseridos. Temos salas altamente, bons estúdios para gravar,
pessoal dedicado, etc.... falta apenas é haver um pouco mais de gente, tendo em
conta a oferta que há. O gap entre pessoas a verem um concerto de uma
banda pequena é tão grande comparado com o ver a banda x ou y que vem numa tour
grande a preço estupidamente caro. Passamos a vida a poupar dinheiro para ir
ver concertos aos “supermercados de música” e esquecemo-nos que há uns que
continuam a tocar em salas minúsculas, caves, etc., sem nenhum jogo de mercado
e que esses é que carregam às costas a responsabilidade de manter o nome
hardcore/metal/punk aos ouvidos dos mais novos. É sempre fácil cuspir no prato
que se come quando se perde a ingenuidade do início.
Há sempre um tópico em voga no que respeita à música: a pirataria. Como tem
assistido a toda esta discussão? São apenas os grandes nomes a ter motivos para
se queixar enquanto as bandas emergentes simplesmente não resistiriam sem a
Internet? O Crowdfunding será a única solução?
Bem, é um tema delicado, porque eu, enquanto membro desta banda, gostava que
toda a gente tivesse acesso ao disco (e por isso mesmo encontra-se em escuta na
íntegra no Bandcamp da editora), mas por outro lado sei que se a label e
nós não vendermos discos, para a próxima poderemos não ter como gravar. Isto é
tudo muito na boa quando estamos a falar de bandas que mesmo que milhões saquem
as músicas, acabam por vender centenas de milhares de cópias. Uma banda como a
nossa necessita de vender um número irrisório de cópias comparado com esses
nomes, mas, no entanto, temos de os vender para conseguir pagar todo aquele
esforço financeiro que foi metido na gravação. Neste último disco gastámos uma
"nota" puxada e era fixe que as pessoas compreendessem que boas
gravações são caras, que gravar um disco com bom som para curtirem requer um
esforço da nossa parte, muitas vezes com dinheiro que nem temos. Se gostarem da
música e quiserem realmente apoiar a banda podem sempre comprar o CD ou vinil e
nós vamos agradecer, porque, no nosso caso, não é um gajo de fato e gravata que
não se interessa pela música que vai lucrar. São mesmo putos do punk/hardcore
que tentam minimizar os custos de um lançamento.
E até porque são pedras basilares do hardcore nacional, como olham para o
movimento entre portas?
Pedras basilares será uma expressão demasiado pesada para carregarmos esse
fardo às costas. Eu acredito que o movimento punk/hardcore em Portugal está forte. Temos várias
bandas em várias cidades distintas e existe um sem fim delas que quer vir cá
tocar. As grandes e pequenas tours passam por cá com regularidade e já
deixámos de ser aquele spot distante para o qual as bandas não tinham
tempo. Agora todas tentam arranjar um "buraco" para vir a Portugal.
Muita gente sente um vazio de ideias e que o feeling dos anos 90
perdeu-se. Eu sinto que ele está cá, apenas tem de ser canalizado para melhores
resultados. Se não há zines, é porque alguém se queixa mas não as faz. O
DIY não pode ser só chamado para os outros fazerem. Apontamos facilmente o dedo
às lacunas e tentamos esconder as virtudes, mas o que é um facto é que se há
falta de alguma coisa é porque não foi deixado um legado ou passada uma
mensagem clara.
Até Dezembro estarão com os Switchtense na estrada. O que têm a salientar
até ao momento e o que esperam do que resta dessa experiência?
Estar na estrada com eles é sempre brutal. A nossa amizade não é muito antiga
mas parece que já passámos por muito juntos e então tornou-se muito forte. A
química entre as duas bandas é forte e ambos compreendemos o que cada banda
toca. A música, quando estamos na estrada, acaba por ser secundário. Tanto
vamos na viagem para o Porto a ouvir hardcore, como vimos para Leiria a ouvir
death metal... e tudo nice! Esperemos que as pessoas percebam que No
Barriers [Tour] é mesmo isso - saber coexistir com pessoas de outro estilo
diferente do nosso e que não temos de ter medo de aceitar a diferença de cada
um.
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