Entrevista Malevolence
DUALIDADES CÓSMICAS
"A criação artística não se pode
adaptar às limitações mentais das massas modernas"
A 22 de Novembro terminou o
"calvário" para os seguidores dos Malevolence, depois de mais de uma
década sem qualquer lançamento. "Antithetical" afirma-se, no entanto,
como justificação plausível para tão longo jejum, já que serviu para o grupo
de Leiria operar um notável upgrade
na sua visão cada vez mais obscura, anárquica e quase filosófica de metal
extremo. Carlos Cariano, vocalista, guitarrista e principal mentor do veterano
projecto, explica porque não é necessário forçar ímpetos quando se trata de
arte, de como a banda sobreviveu sem edições ou se algo mudará na
sua rotina futura, entre vários outros assuntos em torno de um dos discos nacionais
mais consistentes de 2013.
Segundo os próprios Malevolence,
catorze anos de jejum em termos editoriais explicam-se pelo vosso descomprometimento
enquanto artistas, mas também pelas vossas vidas pessoais. Ainda assim, asseguram
que existe "ideias constantemente a surgir". Como se compreende que
todas essas ideias tivessem precisado de tanto tempo para se materializar num
disco?
Todo o processo faz parte de uma tradição que se vai criando dia após
dia. Trata-se de uma forma natural e espontânea de abordar um método de
composição que se demonstra atípico e resistente de forma transversal ao passar
dos tempos. É desta forma realizado um esforço homogéneo, dando origem a
categorias bem definidas que subdividem a nossa produção.
Carlos Cariano continua a ser a
figura mais representativa dos Malevolence, até por ser o único membro fundador
da banda. Isso significa também que é quem assume as rédeas de toda a
composição ou esse é um processo colectivo? Quais as vantagens de trabalhar
individualmente?
Todas as experiências e resultados finais só são possíveis através da
intervenção colectiva de todas as mentes envolvidas no processo.
Uma das grandes figuras neste disco é
Dirk Verbeuren [Soilwork]. Afirmou recentemente que o levou a fazer coisas que
nunca tinham sido feitas. O que poderá ter sido inédito para um baterista tão
experimentado?
O Dirk é uma das peças fundamentais na execução de toda a produção que
realizei para este álbum. É um baterista extremamente versátil e com um extenso
currículo em diversas áreas – razões pelas quais se encontra como parte
integrante do trabalho. Em audição pormenorizada a todo o conteúdo do álbum, é
possível descortinar diversos padrões e metodologias rítmicas atípicas ao
executante. Recordo-me, inclusivamente, de diversos momentos bastante
trabalhosos pelos quais passámos em conjunto, onde o Dirk me dizia que "Antithetical"
era o álbum que mais trabalho mental de interpretação lhe tinha dado até ao
momento. Tendo em linha de consideração a sua vasta experiência e extensa
carreira, consideramos tais argumentos como factores determinantes na génese de
elementos radicalmente inéditos.
Tendo em conta um processo de
composição pretensamente muito longo, chegou a pensar que seria impossível
regressar como banda ou mesmo que perante uma actividade tão intermitente tal não
faria sentido? No fundo, houve algum momento de bloqueio ou desânimo?
A nossa criatividade é uma capacidade produtiva onde a imaginação e a razão
estão associadas e cujos resultados são sempre realizáveis na prática. Se
determinados trabalhos demoram um período maior de tempo a serem realizados do
que outros isso não implica que tenham que existir momentos de bloqueio ou
desânimo. Por outro lado, não consideramos a realização de "Antithetical"
como um regresso, mas sim como a continuidade do trajecto iniciado em 1994.
Quando é que sente mesmo que é hora de
lançar um disco com os Malevolence?
Quando sentimos que todas as estruturas harmónicas que concorrem para
determinar o equilíbrio artístico de todo o conceito se manifestam completas derivando
desse processo todas as sensações necessárias à nossa realização pessoal.
"Nunca sentimos necessidade de adicionar músicas a um determinado trabalho só para encher, como muitas bandas realizam por esse Mundo fora"
Sendo que quatro dos temas de
"Antithetical" foram (ainda que sem autorização) divulgados em 2003,
restam neste disco três composições novas. Será que os fãs se sentirão
defraudados por tanta espera e tão pouca "novidade" (ainda que
quantidade não seja sinónimo de qualidade)?
Efectivamente, Malevolence é uma banda que prima pela qualidade em
detrimento da quantidade. Em vinte anos de desenvolvimentos nunca sentimos a
necessidade de adicionar músicas a um determinado trabalho só para encher, como
muitas bandas realizam por esse Mundo fora. Não é esse o modo de desenvolvermos
a nossa arte! Para o fã que realmente é fã basta ouvir o álbum para entender
que todas as composições são novas, já que todos os temas da demonstração de
2003 sofreram diversas mutações ganhando uma dimensão qualitativa face às
versões da maqueta indevidamente divulgada.
Em primeira instância, denota-se
uma maior agressividade vs. experimentalismo
entre "Antithetical" e "Martyrialized". É nesse foco que
reside a grande diferença entre a música destes dois discos? Pelo menos, basicamente, desapareceram as influências góticas...
A criação artística não se pode adaptar às limitações mentais das massas modernas, deve, antes pelo contrário, ter a função de alargar, tanto quanto possível, o seu horizonte.
A criação artística não se pode adaptar às limitações mentais das massas modernas, deve, antes pelo contrário, ter a função de alargar, tanto quanto possível, o seu horizonte.
Até que ponto se pode considerar
"Antithetical" verdadeiramente influente e marcante para o meio
nacional e mesmo internacional?
É necessário começar a pensar em termos mundiais. As discussões reducentes
em termos de interesses nacionais são quase sempre expressão de uma mentalidade
limitada e de um ponto de vista retrógrado. Não interessa minimamente o grau de
afinidade ou divergência que o público mantém com a nossa expressão artística. Não
é urgente nem necessário que a nossa arte, como tantas outras, que mudam
continuamente no tempo, segundo os momentos históricos em que interagem, seja
considerada como extremamente competitiva ou alvo de maior compreensão em qualquer
dos meios mencionados.
Em que se inspirou para baptizar
este disco de "Antithetical"? Será que o mundo à sua volta tornou-se
um verdadeiro conflito de ideias e realidades opostas?
A designação "Antithetical" encerra na sua génese a
manifestação do conceito de dualidade sobre toda a matéria do Universo - matéria
volátil e não absoluta em contínua manifestação e transformação.
Acredita na instrumentalização
dos meios de promoção para influenciar a opinião pública? De que forma os têm
utilizado para potenciar o trabalho da banda? Ainda por outro prisma, será que os
media são um dos grandes motivadores
do sucesso ou insucesso de uma banda, actualmente?
Existe, de facto, uma elite formada pelas pessoas mais importantes de uma dada sociedade que condiciona o
resto dessa sociedade. É essa elite que inquina as águas, o ar, a terra, que
mata milhões de animais, que destrói o equilíbrio ecológico, descarregando o
lixo estéril para cima dos seus semelhantes. Não é um processo revolucionário -
é algo que acontece desde que o Homem tomou a consciência de que a sociedade contém
inúmeras fragilidades. As elites são impulsionadas e alicerçadas em motivações
materialistas pelo que não é a grande maioria dos desfavorecidos que leva a cabo
todas estas atrocidades. Um autêntico artista, numa sociedade de elite, não é aceite, sendo considerado
desadaptado. No entanto, a rebeldia das massas mais desfavorecidas tem o poder
de subjugar qualquer tipo de elite, já que o domínio da música não pode ser
retido e, só por si, derruba qualquer tipo de bloqueio conquistando o universo.
"Antithetical" foi gravado há cerca de um ano e meio. Seguem-se várias actividades promocionais, nomeadamente, em sites estrangeiros, e lançaram um videoclip. Tudo leva a crer que a banda seguiu meticulosamente um plano de promoção que culminasse com o contrato com uma editora. Isso acaba por acontecer, mas como uma estrutura muito jovem (independentemente da experiência do seu staff), cujo primeiro lançamento é precisamente "Antithetical". Muito objectivamente: sonhavam com mais, dado que sustiveram por tanto tempo o lançamento do disco?
Perseverar previamente o trabalho englobou todo um processo de promoção
encetado pelo nosso sistema que demonstrou, acima de tudo, que é possível
trabalhar de forma independente obtendo resultados extremamente positivos. A
estrutura pela qual assinámos engloba no seu colectivo diversos profissionais
do ramo que já pertenceram a algumas das maiores editoras internacionais. Ainda
que o nome seja novo no mercado, o que nos cativou foi o grau de
profissionalismo, dedicação e humanidade demonstrado para com a banda e, nesse
sentido, estamos completamente satisfeitos.
Nunca passou pelos vossos planos
lançar "Antithetical" em nome próprio? Seria por uma questão
financeira, de funcionalidade ou, em última instância, desprestigiante?
Efectivamente, nunca esteve nos nossos planos lançarmos o álbum em nome
próprio. Com isto não queremos dizer que não tenhamos a teoria e a prática
necessária para tal execução, até porque, como se pode constatar, seguimos
individualmente um plano de promoção meticuloso até à concreta realização do
contrato. Todas as mentes interrelacionadas com este colectivo pertencem a
seres humanos com uma agenda bastante preenchida, o que inviabilizaria em
termos funcionais o lançamento em nome próprio devido a todos os procedimentos
promocionais necessários após lançamento. O facto de sermos representados por
uma editora não retira qualquer tipo de prestígio a outras bandas que se fazem
representar pelos seus próprios métodos. No final de contas, o que interessa é
a música.
Ouvimo-lo afirmar recentemente
que é tão exigente com os outros quanto quer que sejam consigo. De facto, é uma
postura de exigência que tem cultivado em torno da banda. Porém, não será
também arriscado colocar a fasquia tão alta?
Obviamente que é arriscado mas existem diferentes formas de
interpretação conforme os interesses dos próprios autores. Experimentar as
possibilidades dos instrumentos da nossa época em busca dos meios para
transmitir um pensamento actual do modo mais completo, mais claro e mais
universal só por si não nos satisfaz. Já no sentido inverso, orientar a nossa
arte para o conhecimento profundo dessa linguagem e das suas diversas possibilidades
de comunicação é algo que diariamente nos atrai, independentemente da mensagem
ser mais ambígua ou polivalente.
"Um autêntico artista, numa sociedade de elite, não é aceite, sendo considerado desadaptado"
Pela mesma ordem de ideias, afirmou
não haver grandes planos para actuar, a não ser mediante condições específicas
oferecidas pelos promotores. No fundo a questão é: até que ponto é possível ser-se
selectivo no mercado actual e, no fundo, do que precisam os Malevolence para
subirem a um palco?
Existem determinadas condições técnicas específicas para que os
Malevolence possam subir a um palco regalando os presentes com a maior
qualidade de prestação exequível. As condições técnicas são até mais
importantes do que as condições monetárias, ainda que ambas devam ser
compreendidas como um todo. Para que exista um nível de execução de qualidade,
porque quem se desloca aos concertos assim o merece, é necessário ser-se
extremamente selectivo, independentemente da flutuação dos mercados ou das
condições oferecidas pelos promotores. É uma forma consciente de não "vender
gato por lebre" ao público que, na maioria dos casos, neste segmento
musical, se desmultiplica em sacrifícios. O público merece sempre o melhor, uma
vez que realiza centenas de quilómetros e paga avultadas quantias para poder
observar as suas bandas preferidas ao vivo.
Não sente muitas vezes saudades
do palco e de estar em contacto com o público?
Prezo bastante o contacto com o público, mas não necessariamente
através de um sustentáculo que me eleve
acima de todos os demais, se me faço entender. Sou apenas mais um fã de música,
entre tantos outros. A ideia associada aos palcos de que as verdadeiras
estrelas se encontram num patamar superior, sendo que todos os outros se deleitam
em devoção num nível inferior, ainda hoje me causa uma certa confusão. O
verdadeiro "palco" no meu sentido estético é o que proporciona o
prazer auditivo a qualquer ser semelhante produzindo sensações inigualáveis através
da música realizada. Confesso que não sinto, minimamente, saudades de outro
qualquer tipo de palco, embora seja
um procedimento incontornável para quem pretende realmente fazer da música o
seu principal meio de subsistência.
Neste momento, também já
desenvolvem ideias para um novo trabalho discográfico. Isto significa que teremos
um disco dentro de um ou dois anos?
É provável, mas nunca absoluto! Desenvolvimentos futuros e sequenciais podem
vir a alcançar uma maior importância durante esses períodos, projectando, invariavelmente,
interseções que continuarão a flutuar livremente no ambiente, sem um plano
definido de projecção.
Sem querer retirar-lhe o factor
surpresa, é possível deixar aos fãs, pelo menos, uma vaga impressão sobre como
poderão soar os novos temas?
A melhor expectativa é não termos qualquer tipo de expectativa. Ainda
que a produção musical de hoje tente transformar a manifestação artística em
forma de consumo fácil e rápida, continuaremos a representar uma mente colectiva
atípica e sem qualquer tipo de pudor que não trabalha para uma colecção de
pessoas nem para as suas entidades associadas. A única impressão que poderemos exibir,
neste momento, é a de que continuaremos a desenvolver-nos, tanto no prisma
musical como humano, por forma a atingir novas sensações, independentemente dos
prazeres provocados ou injectados por estímulos exteriores.
Nuno Costa