PALHA D'AÇO: entrevista com Freddy Duarte
Nos idos de 1997 uma dupla de
impertinentes rapazes - Sílvio Avelar e Freddy Duarte, inconformados com a tradicional
tranquilidade açoriana, decidiu começar a espalhar a desordem e o caos por bandas
da ilha Terceira. A espontaneidade e irreverência típicas da idade fê-los abrir
um novo capítulo no que toca ao punk rock açoriano, mas as vicissitudes da vida remeteu-os para um hiato de cerca de dez anos. Motivo insuficiente para
desistirem da sua luta e 2014 configura-se como o ano da "fénix
renascida" na forma de «Desconcertante». Um registo de transição que
celebra o passado da banda, o presente e projecta o futuro, como nos foi documentado
pelo guitarrista Freddy Duarte.
É quase inevitável não começar por
perguntar porquê dezassete anos para lançar um primeiro disco? É sabido que a
banda esteve "congelada" durante dez anos (com alguns concertos pelo
meio), mas terá sido mesmo impossível impor outro ritmo à carreira da banda?
Pois, parece
mentira, mas foi o que se conseguiu fazer. A banda surgiu em 1997, mas de 1999
a 2010 só se juntava quando eu voltava à ilha Terceira de férias. Ainda assim,
como foi dito e bem, demos uns concertos engraçados e fizemos umas músicas
novas durante esse período, mas só a partir de 2010 (quando voltei de vez) é que
se voltou a colocar a possibilidade de voltar a tempo inteiro. Porém, foram
tantos os obstáculos que a banda esteve na iminência de acabar. Depois sugeri
que fossemos ao Angra Rock de 2013 e a verdade é que o segundo lugar obtido deu
uma nova alma à banda. Com o prémio monetário do concurso fomos para o Waveyard
Studio do Tiago Alves gravar o nosso primeiro álbum com o intuito de obter um
registo do que a banda tinha de melhor. O facto de o álbum ter excedido todas
as expectativas, tanto a nível de qualidade de som, como qualidade da ilustração/design,
serviu de motivação extra para continuarmos, mas desta vez numa direcção mais séria
e intervencionista.
Como
se sentem depois de ver, finalmente, esse acto consumado? Chegaram a pensar que
esse momento nunca chegaria?
Apesar de tudo,
a gravação ocorreu a um ritmo bastante bom, sendo que o mais importante foi
termos conseguido deixar um registo do nosso passado do agrado da maioria.
Agora, queremos mesmo é pensar no futuro e no próximo álbum, porque, esse sim,
vai ser o espelho do nosso estado de alma actualmente.
Não se percebe porque é que o Governo cria obstáculos à expansão da cultura. Sim, o rock também é cultura.
Apesar
de este ser um primeiro disco acaba por funcionar como uma retrospectiva da
vossa já longa carreira - apenas dois temas são escritos depois do vosso regresso.
Era mesmo fundamental disponibilizar o vosso material mais antigo antes de
partirem para uma nova fase?
Sim, o
objectivo foi sempre de se fazer um registo do passado, mas quisemos também
deixar um cheirinho do futuro com a «Luta Sem Fim» e a «Revolução». Era
importante para nós haver um registo de qualidade do nosso passado porque muito
nos fez rir e crescer como músicos e amigos. Agora estamos claramente numa fase
de virar a página.
Muito
objectivamente, os PALHA D'AÇO são hoje uma banda e compositores muito
diferentes dos primeiros anos? Terá sido uma mudança natural ou quiseram
mesmo rebuscar a vossa sonoridade e dar-lhe outra complexidade que nem sempre o
punk apresenta?
Sim, somos músicos
bastante diferentes. A nível técnico somos, obviamente, um pouco melhores e
conseguimos ser consistentes dentro das nossas limitações, realçando o que de
melhor temos - na minha opinião, claro - como a presença em palco, qualidade de
composição dentro do género musical e a eficácia no passar da mensagem. Esse último ponto é fundamental para nós
neste momento. Temos muito em comum com os portugueses que mais sofrem com o
sistema actual e queremos muito expelir o nosso repúdio que certamente será compartilhado
por muitos. Portanto, sim, foi uma mudança natural, fruto dos tempos e do mundo
que vivemos e do impacto que esses factores tiveram em nós. O novo som será, sem
dúvida, na onda de «Luta Sem Fim» e «Revolução» e até já temos mais quatro
temos novos enquadrados nessa sonoridade.
«Desconcertante»
é um disco feito em moldes muito underground - com edição restrita a 100
unidades. No entanto, a qualidade de gravação e do próprio design
demonstram que é possível
apresentar um bom trabalho vencendo as adversidades do mercado insular...
Sem dúvida que
este trabalho não teria visto a luz do dia sem o Tiago Alves e o Fábio da Anoise
Recs. O trabalho deles foi, a todos níveis, super profissional e, como já disse,
excederam todas as expectativas. As reacções têm sido bastante positivas e,
desde já, quero dizer que recomendo vivamente a trabalharem com eles.
Ser
uma banda de música alternativa hoje em dia nos Açores é muito diferente de nos
anos 90? O cenário
aparenta grandes mudanças, mas isso trava os PALHA D'AÇO nos
seus ímpetos e objectivos? O que pode e deve ser mudado?
Os anos 90
foram em grande parte dominados pela música rock, grunge e heavy metal, pelos cabelos
compridos e calças rotas. Claro que numa altura sem internet, sem telemóveis,
sem Xbox e Playstation, a música se calhar chamava mais gente, teria mais
importância e impacto social. No entanto, a verdade é que estamos bem melhores
hoje no que diz respeito à qualidade das bandas e também dos outros
intervenientes, nomeadamente técnicos e empresas de som, estúdios, etc.
Contudo, há sem dúvida enormes entraves à realização de espectáculos ao vivo.
Por lei, é preciso uma série de licenças pelas quais se pagam um balúrdio. Como
tal, muitos estabelecimentos preferem DJs a música ao vivo. O custo dos técnicos
de som e o respectivo material também é elevado, mas não se percebe porque é que
o Governo cria obstáculos à expansão da cultura. Sim, o rock também é cultura,
como diria o Sr. Hélio Vieira, e muitíssimo bem. Os PALHA D'AÇO são
quase sempre obrigados a tocar com o seu próprio material, sem que tenhamos
grandes condições de som, mas é a realidade absurda em que vivemos, contra a
qual vamos continuar a nossa luta.
É
uma tendência
muito comum no punk a mensagem interventiva. No entanto, os PALHA D'AÇO
associam a crítica social a um sentido de humor muito apurado. Quer
explicar-nos de onde vem a inspiração para letras tão descomprometidas e quotidianas como «Joaquim»? A vossa terra serve-vos muito de inspiração quando escrevem?
Eu não me
responsabilizo por letras feitas há tanto tempo! O «Joaquim» foi uma das nossas
primeiras músicas. Naquela altura não tinha grandes coisas para dizer e, como
tal, recorria bastante ao humor e à inspiração que o quotidiano da ilha
Terceira nos oferece. Acho que a nível lírico o «Desconcertante» oferece um
pouco de humor nonsense/sarcasmo, crítica
social e até um toque de amor na «Sempre Por Ti». Há também duas músicas
dedicadas a duas pessoas que foram muito importantes na minha vida e que já não
estão connosco - «O Legado» é uma dedicatória à vida do meu pai e ao que sofreu
para nos deixar bem melhor e a «Em Honra de Um Homem» é dedicada ao meu tio.
Foram as letras mais difíceis de fazer e, sem dúvida, as que penso que estão
mais fracas, precisamente por ser tão difícil homenagear com justiça vidas tão
ricas e belas. Hoje em dia, a nossa linha lírica recai, como foi dito e bem, sobre
a crítica social e ao sistema que insiste em sobrepor o dinheiro ao ser humano.
Aqui sim, torna-se bastante mais fácil escrever porque basta olhar à nossa
volta.
Em
termos de crítica social, que aspectos mais preocupam os PALHA D'AÇO? Cavaco
Silva não parece ser uma personalidade que mereça muita da vossa admiração como
se constata em «Revolução»...
Nem o Cavaco
nem a grande parte da comunidade política! Estão a fazer um trabalho horrendo,
o qual é evidente demais. Aliás, o Cavaco é um inútil e todos sabemos disso. Somos
líderes em pobreza, analfabetismo, diferenças e injustiças sociais. Será tão
difícil assim copiar modelos que funcionam melhor, como os da Suíça, Suécia e
Finlândia? Nem digo copiar tudo, mas pelo menos a nível escolar porque trata-se
da espinha dorsal de qualquer sociedade. Por isso, acho que a grande lacuna da
nossa sociedade é a falta de escolaridade ou formação profissional. Não digo
que todos tenham que seguir a via académica/universitária, mas têm que forçosamente
chegar à idade adulta com algum tipo de formação que lhes permita ser uma
mais-valia para a sociedade e, por consequência, para eles próprios. Conheço inúmeros
casos de pessoas que estão desempregadas com licenciaturas porque simplesmente
formaram-se em áreas sem saída. Outros
casos, são desempregados que não têm qualquer formação - não sabem "pregar
um prego" e é óbvio que vão ter dificuldades em obter um emprego. Isto
tudo é em grande parte culpa do Governo que aparentemente não cria os
mecanismos necessários para os jovens se formarem em áreas relevantes (nos
Estados Unidos, por exemplo, existem conselheiros nas escolas que guiam os
estudantes para áreas de estudo onde há emprego) e dos pais que não cultivam o
gosto pelo conhecimento e bons hábitos escolares nos filhos.
Os objectivos passam por fazer mais seis temas e entrar em estúdio antes do fim do ano.
E
depois há o hino que é
«Miúda Feia».
É inevitável não lhe pedir para contar a história por detrás desse tema…
A «Miúda Feia»
é um tema que tenta ser hilariante ao mesmo tempo que retrata, de certo modo,
um episódio de uma adolescência cheia de histórias engraçadas. Era para ser uma
música de "despedida" e sentimental, porque foi a última que fizemos
antes de eu emigrar em 1999. Como a letra "séria" não saiu, ficou
mais um relato da nossa adolescência, o qual não podemos entrar em mais
detalhes por questões "logísticas"…
Urge
neste momento perceber como estão as perspectivas dos PALHA D'AÇO para os próximos
tempos. Aparentemente ainda não houve uma promoção em grande escala. Acham que
com a vossa sonoridade não seria possível pelo menos uma ida a outra ilha? O
Continente também dispõe de um interessante circuito punk. Como estão a planear
a promoção?
Estamos, sim
senhor! Realmente não houve uma grande promoção do álbum, por grande culpa
daquilo ser apenas um registo do nosso passado e, como tal, não representar o
som que queremos tocar daqui em diante. Contudo, estamos a trabalhar com o
Paulo Sousa "Sissinho" para conseguirmos, quiçá, sair da ilha, talvez
para São Miguel ou o Continente. Temos bastante vontade, temos alguns
contactos, falta o dinheiro. A ver vamos.
Um
novo disco já vos passa pela cabeça? Certamente não devemos esperar mais
dezassete anos para ver uma nova colecção de temas... De que é que isso
dependerá?
Sem dúvida! Já estão
completos, como referi, quatro temas para o novo álbum. Em breve vamos também
trabalhar para o lançamento de um videoclip
que em princípio será o de «Luta Sem Fim». Os objectivos passam por fazer mais
seis temas e entrar em estúdio antes do fim do ano. Mais uma vez a boa
classificação no Angra Rock vai-nos permitir continuar o nosso caminho, a nossa
luta. Para quem nos quiser apoiar, temos o álbum «Desconcertante» à venda por
cinco euros. Estamos também no Facebook em www.facebook.com/melhorbandadaactualidade. Nota: não somos realmente a "melhor
banda da actualidade".
Nuno Costa