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CRÓNICA: A Lei da Cópia Privada: mais um tiro no pé?


Foi hoje aprovada (ainda que sujeita a alterações) uma nova Directiva para a Lei da Cópia Privada, criada originalmente em 1998, que taxa dispositivos equipados de memória como leitores de MP3, telemóveis, tablets, discos rígidos e pen drives. O assunto foi intensamente debatido nos últimos tempos e é motivador das mais diversas opiniões. Por um lado, os autores reclamam uma maior protecção aos seus direitos e um ajustamento à evolução das novas tecnologias. Por outro, o consumidor sente-se ultrajado por não considerar-se responsável pela crise no sector e recusa que se generalize o uso das tecnologias para o consumo de obras autorais.  

Muito resumidamente, a taxa proposta pela Lei da Cópia Privada não ultrapassa os 20 euros.  A percentagem cobrada será calculada pela capacidade de memória dos equipamentos (ex: telemóvel de 8GB - 0,96€; tablet de 16GB - 1,92€; disco rígido 1TB - 4€; pen drive de 16GB - 0,25€). O valor mais alto será aplicado às impressoras e fotocopiadoras (na ordem dos 15 euros).

Um dos grandes focos de discórdia parte da indústria das tecnologias que afirma não estar em condições de suportar mais esta taxa sem prejudicar o consumidor. Já os autores e associações culturais argumentam que a margem de lucro desta indústria é enorme e que não há razões para inflacionar o preço dos produtos. Entre outros tópicos, é importante sublinhar qual é o destino da receita obtida a partir desta taxa. Segundo José Jorge Letria, presidente da Sociedade Portuguesa de Autores [SPA], o montante auferido será gerido pela Associação para Gestão de Cópia Privada [AGECOP] e distribuído, em 20%, à Sociedade Portuguesa de Autores [SPA] e posteriormente canalizado para fundos culturais, enquanto outros 40% serão atribuídos directamente a artistas e produtores.

Posto isso, torna-se também fundamental perceber qual é o conceito da Lei da Cópia Privada. Segundo João David Nunes, vice-presidente da SPA, esta lei legitima a utilização privada de uma obra que é obtida legalmente. Embora confundível, os intervenientes do debate afirmam que este conceito não está, de todo, relacionado com a pirataria. A exemplo, João David Nunes refere o cinema - quando uma pessoa gosta muito de um filme, é capaz de pagar novamente para assisti-lo. Por essa lógica, uma obra que é adquirida legalmente (um filme ou disco de música) não transfere os direitos autorais para o consumidor, como é óbvio, mas será razoável condicionar a aquisição de equipamentos quando o consumidor pode nem utilizá-los para usufruir de uma obra registada?

Esta tem sido uma das grandes questões levantadas. Todavia, a classe artística é intransigente na forma como pretende ver recuperada uma receita que em tempos foi milionária e que as novas tecnologias, alegadamente, lhes veio retirar. Na palavra do cantor e compositor Tozé Brito, as receitas do mercado e indústria musical em Portugal passaram de 120 milhões em 2000 para 16,5 milhões em 2014.

Se a nós, que não somos juristas ou intervenientes directos na matéria, nos é legitimada a opinião, permitam-nos a seguinte questão: porque, efectivamente, o consumidor se afastou do modelo tradicional de comercialização de arte? A resposta é óbvia - o poder de compra diminuiu drasticamente e as tecnologias desenvolveram-se desmesuradamente, enquanto a arte manteve valores inflacionados. A preocupação dos artistas é recente, tem talvez uma década. Parece por demais evidente que, sobretudo para os monstros sagrados da música portuguesa, a preocupação resulta de um estado de crise que é, sublinhe-se, transversal a toda uma sociedade. Logo, são apenas mais uma classe entre tantas outras em estado fracturante. Dá isto o direito de se arranjar estratagemas para se beneficiar uma elite (sim, alguém falou nos músicos underground ou independentes?), mesmo que esta lei esteja em vigor em vários países europeus (a maioria com um nível de vida muito mais elevado que o português)?

Olhe-se para os grandes nomes da música internacional. Uma boa parte está a tentar adaptar-se aos novos tempos. Ninguém quer abolir a tecnologia, pois nunca houve tanta facilidade em atingir-se uma vasta audiência e de forma tão barata. Alguém preocupou-se quando o próprio sistema digital ou a internet surgiu há décadas? Será que não era possível prever que se chegasse à situação actual? Simplesmente, não era conveniente, enquanto se facturava milhões. Note-se: os U2 já não facturam tanto pelas vendas de discos, mas ainda recentemente cumpriram uma das suas digressões mais rentáveis de sempre.

Ponha-se a questão de outra maneira. O advento das tecnologias veio facilitar a criação de projectos e o lançamento de obras. Simplesmente é humanamente impossível ter um mercado que responda a isso. Ninguém pode consumir sequer (já nem falamos em comprar) todos os discos, filmes ou livros que são editados em catadupa mensalmente. Inevitavelmente, os mais revelantes, inovadores e brilhantes vão persistir. É preciso assumir-se que a própria qualidade da arte, em geral, sofreu uma certa estagnação. Não têm sido operadas grandes revoluções artísticas e, por conseguinte, o consumidor está mais imune à mediania. Alguém dúvida que ter o original de Mona Lisa é mais inspirador e mágico do que ter uma réplica (mesmo que idêntica)? Ninguém toma por gosto a decisão de obter obras ilegalmente. É mais "barato" e simplesmente foi uma consequência da voracidade de uma indústria e de uma classe artística que quiseram, enquanto puderam, abastar-se.

Mas ok, esta lei não fala de pirataria. Esta lei simplesmente tenta legitimar o consumo privado de uma obra que foi adquirida legal ou ilegalmente - assim, de forma arbitrária. É uma taxa semelhante a tantas outras cobradas pela difusão em suportes como a televisão, rádio ou mesmo aos promotores de espectáculos. Cada vez que uma obra é reproduzida, deve ser paga. É isso que eles pretendem, agora também dentro das nossas casas. Ou talvez não. Só não querem que haja uma indústria (a tecnológica) a lucrar tanto com o seu trabalho quando também foi por ela que tanto lucraram. Cúmplices?

É verdade que pagamos tantos impostos, e este até nem devia surpreender ninguém, mas será que a presunção de pobreza de uma classe social elitista é suficiente para honrar uma lei como esta? Senão teríamos de fazê-lo com outras classes, até porque, dizem alguns, não está provado que a cópia privada cause prejuízo aos artistas. A guerra é, portanto, contra a indústria das tecnologias. Resta aguardar para perceber se os tais paladinos da justiça não farão recair a solução dos seus males sobre a parte mais insuspeita e inócua deste problema: o consumidor. Mas será que alguém duvida do contrário?

Nuno Costa

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