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CRÓNICA: Artista rima muitas vezes com oportunista


A liberdade de expressão é um direito adquirido. Começar-se-ia por aí o debate que coloca muitos músicos actualmente a tentar encontrar uma forma de se adaptarem aos novos tempos, tempos estes marcados pela proliferação das tecnologias e o declínio de certos modelos de negócio. O que tornou a música num universo tão apetecível? Certamente a mediatização, o sucesso, a fama e o dinheiro que gerou noutros tempos, noutras décadas, e que levou muita gente a confundir o que é ser artista com ser oportunista. É exactamente este o problema (muitas vezes mal diagnosticado) que motiva a discussão entre quem tem legitimidade para reclamar esta actividade como seu ganha-pão e os que, arbitrariamente e porque têm direito à tal liberdade de expressão, também reclamam um lugar neste... negócio.

Aparentemente, poucos ainda terão percebido que nem todos podem ser músicos, carpinteiros, engenheiros, professores, deputados, economistas, etc, etc... A liberdade de expressão e de escolha, conferida pelos princípios básicos da democracia, legitimaram uma série de acções minadas por uma gigante falta de bom senso, estratégia e sentido comunitário. Aí entram os pensamentos perversos de quem tenta explorar as mais variadas pessoas, classes e situações. É uma questão de cultura. Alguém dúvida que num povo altamente instruído isto aconteceria? Continuo a achar que o problema é de base - de educação e cultura. Como se explica que nunca se encontre um equilíbrio racional entre recursos e necessidades? Como se explica que na altura em que o rock e o metal tinham grande projecção "todos" corressem para também gozar dessa experiência e agora, que o género perdeu estatuto, "todos" correm para o lado oposto?

No contexto nacional continua a verificar-se as típicas discussões sobre quem tem direito ao quê. Não vivemos numa meritocracia, logo vamos continuar a ver muitos oportunistas a roubarem o lugar a quem tem talento e intentos sérios. Mas, o mais chocante, é que todos acabam por ter o seu quinhão de culpa. Foram os próprios artistas (os verdadeiros) a desistirem da sua luta e a seguirem o caminho mais fácil. Juntamos-lhes os oportunistas e temos novamente uma subversão da lei da oferta e da procura. Como se concebe que hajam cerca de 300 bandas de metal/rock e seus derivados (música alternativa, no fundo) num país tão pequeno como Portugal? Como se escoa tanto produto num país com graves problemas estruturais e, ainda por cima, com um poder de compra assustadoramente baixo? Do mesmo modo, a solução nunca poderia passar por estes mesmos "300" mudarem radicalmente a sua linguagem - tocar covers, versões, tornarem-se bandas de baile, só para dar o exemplo mais óbvio e actual. Houve, portanto, uma permuta, um câmbio, um êxodo quase total daqueles que antes tocavam o que supostamente lhes enchia a alma para aquilo que (e diga-se sem rodeios) hoje, e apenas hoje, lhes garante outras... oportunidades (para não usar termos mais deselegantes).

Com o mercado novamente saturado, a lógica devia ser a da qualidade sobre a quantidade. Quem discerne estes dois conceitos, ainda mais num país onde a principal preocupação é a sobrevivência (ainda que muitos se tenham vendido por tão pouco)? Deveria ser o público e os promotores, mas isso não acontece porque não há bagagem intelectual nem cultural para tal. Mesmo assim, terão que ser os músicos a criar argumentos para provar que o seu produto tem mais qualidade que o da concorrência. Não há outra hipótese, não vale a pena reclamar honestidade e valores - eles não existem no contexto actual. Não se pode exigir aos tais oportunistas que apliquem preços justos ao seu trabalho, porque estes procuram o mesmo que os verdadeiros artistas - dinheiro. Entra-se aqui no tal paradoxo: quem são os artistas e quem são os oportunistas? Acabamos todos por ser um pouco dos dois, não é verdade? Quando a minha empresa deixa de funcionar só me resta abandonar o ramo ou então procurar novas formas de aliciar o consumidor, necessariamente com um produto revolucionário e inovador, certo? Mas fazer isso num momento em que quase tudo já foi inventado dá uma enorme dor de cabeça. Ninguém quer sair da sua zona de conforto, logo é mais fácil começar a reciclar, apanhar a "corrente", como acontece com as covers, e não tarda até entrarmos no habitual queixume sem termos grande moral para falar. O que dizer então do mercado das covers, onde se chega ao absurdo de se passar meses e anos a interpretar o mesmo repertório? É óbvio que, perante tamanha banalização do produto, o promotor contrate o artista mais barato e, por seu lado, o público fique tão estupidificado que cada vez menos consegue discernir qualidade.

A vida é feita de ciclos, mas ciclos como este nunca terão um fim harmonioso. Também não é menos verdade que somos todos um bocado vítimas e culpados, e este discurso, embora duro, não é menos do que a constatação de uma estratégia que se desenvolve há anos com resultados claramente negativos. Está obsoleta! Enquanto não houver uma consciência generalizada de que a arte é mais do que um negócio, simplesmente não nos livramos deste transtorno. Como se faz isso? Há certamente muitas soluções provisórias (legislação, criação de associações, fiscalização), mas a mais efectiva e correcta vem da conduta e dos valores que se criam e transmitem desde o nosso berço. É de educação e cultura que estamos a falar. Há, por isso, uma reforma assustadoramente complexa e profunda a operar, e que precisará de décadas até gerar resultados. Já dizia François Guizot: "A música oferece à alma uma verdadeira cultura íntima e deve fazer parte da educação de um povo." Quem se atreve a lançar a primeira pedra? 

Nuno Costa

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