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CRÓNICA: Façam algo de errado em nome da arte!


Entre a discussão poeirenta sobre o estado da indústria discográfica, os discos que não vendem, o "rock que está morto", os concertos que não sobram para todos e muito menos o público, encontra-se, por vezes, esquecida a questão artística disto tudo. Não que seja um tópico totalmente ignorado, mas estranhamente fica para último nesta grande celeuma.

A arte é a expressão livre dos sentimentos, vivências e olhares sobre o mundo, a vida e si próprios. Qualquer grande ideia ou revolução foi consequência de um pensamento fora do padrão de uma determinada sociedade e época. Houve alguém que se esqueceu de tudo o que estava ao seu redor, das regras, e criou algo que acabou por surpreender e contagiar uma multidão. Felizmente que hoje abundam os artistas de altíssima qualidade, mas essa qualidade é muitas vezes apenas interpretativa e não criativa.

O que pode ter gerado um certo receio de arriscar (sim, estamos a falar de arriscar)? Os padrões, precisamente. Cada ser é um mundo completamente distinto. Certamente haverão muitas linguagens e pensamentos próprios que podem resultar em grandes obras de arte. Basta perder o receio de pô-las cá para fora. Parece fácil, mas não é. É um facto. Mas voltando aos padrões, os de hoje são o resultado de uma indústria que cresceu imenso - até um pretenso colapso -, que gerou fortunas a dada altura e se mediatizou ao ponto de enraizar a ideia de que ser bom é fazer o que outros fazem com mais rapidez, com mais notas, com mais instrumentos, com mais ou menos palmo de cara, com uma imagem chocante ou provocadora, com uma produção perfeita, com todas as notas tocadas no sítio e à hora certa, etc, etc.

Se Gene Simmons [KISS] gerou alguma controvérsia ao dizer que "o rock está morto", agora o seu colega Tommy Thayer acerta na mouche (mas não foi o primeiro) quando diz que as tecnologias e a perfeição que esta é capaz de emular destrói a alma e a identidade do artista. Claro que a tecnologia é um ponto a favor dos músicos e longe estamos de querer voltar a ter discos gravados... no esgoto. No entanto, esta afirmação remete-nos para um pensamento: o que é a perfeição? A perfeição que muitos músicos tentam atingir a cada disco, a cada tema? Nestas coisas os paradoxos facilmente emergem: a perfeição está na capacidade de se aceitar a imperfeição. Perfeito é, entre outras coisas, sinónimo de completo, concluído, acabado. Não é apenas uma questão de semântica. Na verdade, perfeição implica uma plenitude que se torna estanque. Logo, nunca deve perdurar muito tempo. O padrão da perfeição terá que ser quebrado a qualquer momento e tomar qualquer que seja o (outro) caminho.

Parece claro que o risco de chocar com algo diferente numa sociedade pretensamente tão evoluída, crítica e "perfeccionista" (capitalista também) é a principal barreira para alguma estagnação criativa que se vive - por parte dos artistas e por parte dos ouvintes, blindados por conceitos que lhes são injectados e difíceis de arrancar. Quando as grandes revoluções se operaram, tudo partiu de um raciocínio simples, intuitivo e inocente. Só depois as coisas foram ganhando formas diferentes e crescendo no sentido da suposta perfeição.  

No meio disto tudo é óbvio que há a ressalvar a liberdade de cada indivíduo. Ninguém deve forçar (lá está) ser diferente. Quanto muito abstrair-se do lado mediático deste ramo e tentar ser o mais genuíno possível, ser ele próprio. Será difícil um músico hoje em dia acreditar que se tocar poucas notas está a fazer um bom trabalho, ou se for desarmonioso vai vender muitos discos/downloads. Inevitavelmente, meus caros, foi sempre assim que se mudou o rumo da história, sem se olhar àquilo que os outros iam pensar. Há sempre uma origem, há sempre um antecedente que serve de inspiração, é verdade, mas a dada altura alguém teve que se deixar levar e criar as suas próprias regras!

A alma, a tal alma de que tanto se fala, é mesmo isto. A perfeição é algo momentâneo e não a podemos aceitar como um conceito absoluto e intemporal. A perfeição na arte nem se deve discutir, é mero acessório para nos orientarmos numa sociedade de consumo - com a legitimidade e lógica comprovadas para que isso aconteça. Não obstante, deve-se sempre ter presente o princípio de que não temos que caminhar todos apenas num sentido. Esse sentido pode ser completamente interrompido a qualquer altura e até inverter-se, se necessário. Assim e sempre que... a alma apelar!

Nuno Costa
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