SULLEN: entrevista exclusiva com Guilherme Lapa e Marcelo Aires
CHEGA SER HUMANO?
Ventos de mudança. Climas que se alteram, mas
que alimentam uma semente que inevitavelmente germinará. Da fineza progressiva
dos OBLIQUE RAIN ao assomo ambiental e devaneante dos SULLEN vão cerca de dez
anos. A experiência e vivências de quatro músicos que tão bem se conhecem, aliados
as duas caras novas, mas cúmplices, resultam em «post human», um disco
imprevisível e profundo que o grupo do Porto lança a 10 de Fevereiro. Uma nova
fase num colectivo que reuniu os maiores louvores num passado recente e que agora
lhe dá a devida extensão. Guilherme Lapa [baixista] e Marcelo Aires [baterista]
explicam em detalhe de onde vem a consistência deste novo trabalho e quais os
ingredientes que o tornam numa obra a absorver com os sentidos bem apurados.
Começando pelas origens de tudo isto: quando
os OBLIQUE RAIN decidem cessar funções, houve alguma "ferida" deixada
aberta? Ou seja, uma vez que a banda foi sempre bem recebida a cada lançamento,
tudo o que se podia esperar naquela fase era um fim precoce. Sofreram com isso?
Marcelo Aires: Com o fim de
algo bom é inevitável que haja algum saudosismo, principalmente pelo grande
orgulho que sentimos pelo trabalho feito. É também um pouco esse orgulho que
nos dá confiança e vontade de fazer mais e melhor. O facto de termos chegado
também a resultados sonoros que nos soam "frescos" é motivador para
que continuemos a caminhar e a tentar esticar ainda mais a corda. Não existe
nenhuma ferida.
Olhando para o que hoje são os SULLEN, parece
claro que a razão do fim dos OBLIQUE RAIN está ligada ao Flávio Silva. Isto sem
significar que lhe possa ser imputada qualquer culpa...
Guilherme Lapa: O fim dos OBLIQUE RAIN aconteceu porque estávamos
a querer seguir caminhos diferentes, sem que na altura tivéssemos imediatamente
percepção disso. As mudanças na formação foram um resultado natural. Nesse
sentido, e com a saída de um músico marcante como é o Flávio, foi também
natural para nós que optássemos por uma identidade nova que reflectisse mais o
caminho que estávamos a tomar.
Há também uma série de ambientes que exploramos mais agora, por onde antes não nos aventurávamos tanto, mas isso é apenas reflexo da nossa evolução como seres humanos.
Aparentemente também tentaram segurar o
barco, visto que do «October Dawn» até à oficialização do término dos OBLIQUE
RAIN vão cerca de quatro anos. Houve um longo período de indefinição ou tudo
aconteceu quase em simultâneo com a "certidão de óbito" que
publicaram em Maio de 2013?
G.L.: Há uma boa
parte de ideias deste disco que era ainda pensado como sendo o terceiro álbum
dos OBLIQUE RAIN. A partir da altura
em que se tomou decisões quanto à mudança, o processo de composição começou a
ser mais intenso e mais rápido. No fundo, atingimos alguma estabilidade e as
coisas foram mais simples. No entanto, isso aconteceu uns meses antes de termos
colocado o anúncio do fim dos OBLIQUE
RAIN.
Daí que quando anunciam os SULLEN, em
Dezembro de 2013, já estava tudo alinhavado e até já decorriam as gravações do
«post human»...
G.L.: O anúncio do
fim dos OBLIQUE RAIN veio já numa
altura em que tínhamos a certeza da formação que fazia sentido. Até aí
continuávamos o processo normal de composição, sem rótulos e sem saber bem o
que iríamos fazer quanto à identidade pública da banda, sendo que tínhamos
consciência de que em termos sonoros estávamos também a mudar.
A opção de continuarem com o núcleo duro dos
OBLIQUE RAIN tornou-se demasiado óbvia a dada altura? Acham que possuem uma
cumplicidade sem a qual dificilmente os SULLEN seriam o que são? Há uma
linguagem comum entre vocês, por assim dizer?
G.L.: Há antes de tudo uma forma semelhante de
ver o mundo e isso é o melhor de tudo, a amizade. Existe cumplicidade entre
todos, à medida que também é cada vez mais natural termos o Pedro [Mendes,
guitarrista] e o João [Pereira, teclista] connosco. São amigos e acrescentam a
sua identidade ao projecto, mesmo não tendo estado a compor connosco desde o
princípio. Uma parte da mudança sonora também se deve a eles.
Outra coisa que podia ser óbvia era a
aproximação à sonoridade dos OBLIQUE RAIN. Ouvido «post human» percebe-se
perfeitamente que as ligações são basicamente nulas...
G.L.: Para nós é um
pouco difícil definir isso. O processo que usamos para compor não é muito (ou
nada) diferente do que usávamos antes e há alguns campos sonoros que se cruzam.
No entanto, há também uma série de ambientes que exploramos mais agora, por
onde antes não nos aventurávamos tanto, mas isso é apenas reflexo da nossa
evolução como seres humanos. Contudo, para dizer a verdade, não conseguimos
afirmar que os SULLEN não soam um bocadinho
a OBLIQUE RAIN. Há quatro elementos
que se mantêm. É natural.
O que mudou na mentalidade do tal núcleo duro
dos OBLIQUE RAIN para que agora explorem um sonoridade algo diferente da que
vos tornou conhecidos?
G.L.: Não sabemos
se mudou muito na mentalidade, mas necessariamente algumas abordagens mudam, a
todos os níveis. Existem muitas aprendizagens feitas que fazem com que tomemos
opções com outra segurança. Mas, voltando a frisar, não existe nenhuma
necessidade da nossa parte de nos demarcarmos muito dos OBLIQUE RAIN. Se assim fosse, significaria que a "ferida"
de que falávamos estaria ainda demasiado aberta. As coisas são o que são: OBLIQUE RAIN foi bonito e SULLEN é uma nova fase entusiasmante
para nós.
As coisas são o que são: OBLIQUE RAIN foi bonito e SULLEN é uma nova fase entusiasmante para nós.
Compor para os SULLEN representa um desafio
maior, visto que a parte ambiental exigirá outra harmonia com um lado pesado que
não tinham mostrado até então? Será isso também um sintoma da
"escola" do Pedro Mendes e do João Pereira ou, no geral, é um reflexo
da tal mudança natural de abordagens?
G.L.: Todos mudámos
um pouco, mas já tínhamos vontade de explorar esse lado mais ambiental e é por
isso que o João encaixou que nem uma luva. Sempre procurámos fazer música que
tivesse dinâmicas diferentes dentro da mesma viagem. É verdade que agora esses
contrastes são maiores e exigem mais de nós como compositores e como
executantes, mas também é essa exigência que nos move. Simplesmente fizemos o
que gostamos e quisemos fazê-lo o melhor possível.
Nos OBLIQUE RAIN o César fazia apenas algumas
vozes, certo? Mas aqui surge cheio de vigor e versátil o suficiente para atacar
também nos guturais. De onde lhe vem essa faceta? Aliás, pouco se sabe do seu background...
G.L.: O César era,
juntamente com o Flávio, o fundador dos OBLIQUE
RAIN e grande parte da identidade musical da banda vinha da personalidade
dele. No primeiro disco há guturais que era ele quem fazia, assim como segundas
vozes. Para este disco dos SULLEN
começou por ser ele a idealizar as vozes para alguém depois eventualmente
executar. Mas de cada vez que ouvíamos gostávamos mais do resultado e foi
unânime que ele começasse a assumir essas funções mais a sério. E ainda bem que
ele aceitou.
O Pedro Mendes foi o produtor de serviço,
correcto? Uma grande vantagem até porque a sonoridade do grupo exige muito
trabalho de ambientes?
M. A.: O trabalho de ambientes foi um trabalho de
equipa e obviamente que precisávamos de alguém que compreendesse os caminhos
que estavam a ser tomados. O Pedro foi fundamental para a última fase do
processo e aí a presença dele começou a ser maior. Mas era alguém com quem
tínhamos uma ligação muito boa e que já estava por dentro do funcionamento da
banda por ter gravado os discos dos OBLIQUE
RAIN. Precisávamos de um guitarrista e entusiasmámo-nos com a ideia de
contar com ele. Foi uma sorte que ele tenha aceitado, pois saiu-nos um
guitarrista, produtor e trabalhador incansável.
Um grande músico e alguém em quem confiamos totalmente.
Se é verdade que o grupo pisa vários terrenos
dentro do metal, tornando-se até difícil caracterizar o vosso som, também temos
aqui e ali elementos que nos fazem pensar em OPETH, TOOL, CYNIC ou mesmo MESHUGGAH.
Embora ninguém goste de rótulos, para quem aconselhariam a vossa música?
M. A.: A todos aqueles que se determinem a
disponibilizar algum do seu tempo para apreciar de forma realmente aprofundada
a nossa música, encarando-a como objecto de arte - com uma audição mais
cuidada, um bom ouvinte irá aperceber-se das imensas camadas sonoras e
ambientes, dos jogos melódicos, harmónicos e rítmicos presentes em todo o
instrumental que enriquecem a nossa música, acabando por retirar qualquer
relevância dos rótulos.
Muito menos óbvio é «Redondo Vocábulo» (ouvir
aqui). Como se explica uma homenagem
dessas num disco de metal sobretudo inspirado naquilo que é feito no
estrangeiro? Ou será que temos também uma alma bem portuguesa neste álbum?
M. A.: Consideramos um pouco complicado e até
estranho tentar rotular este álbum nesse sentido. O caso particular do «Redondo
Vocábulo» partiu de uma vontade colectiva de re-interpretar o tema de Zeca
Afonso com o qual tanto nos indentificávamos, em jeito de tributo à sua pessoa
e influência social, com uma roupagem que viesse ao encontro da nossa estética
musical progressiva, sem pôr em causa o seu teor expressivo de referência, tal
como acontece na versão original. Aqui encontramos uma boa forma de fazer
chegar a música e poesia portuguesas a públicos tão díspares que dificilmente
lhe acederiam de outra maneira.
Podemos é, naturalmente, partir de uma abordagem artística pouco convencional, musicalmente falando, onde mais do que procurar o sentido "funcional" da música procurávamos o "imprevisível".
Este é daqueles discos muito sensoriais, onde
se apela à criação de imagens como um reflexo próximo daquilo que é a vida -
dia e noite, altos e baixos, paz e raiva. É um disco um pouco esquizofrénico
nesse sentido? Como se atinge o estado espírito certo para se escrever um disco
como este?
M. A.: A nosso ver, foi mesmo todo o processo que
envolveu a composição do mesmo e a forma como vivemos todo esse período,
daquilo que surgiu enquanto o projecto OBLIQUE
RAIN se matinha activo, com todos os altos e baixos que o acompanharam, até
ao anúncio oficial de SULLEN. Somos
extremamente ambiciosos com aquilo que produzimos, mas tentamos trabalhar
sempre da forma mais orgânica possível, e daí muitas das vezes ter sido um
reflexo do nosso estado de espírito - podemos é, naturalmente, partir de
uma abordagem artística pouco convencional, musicalmente falando, onde mais do
que procurar o sentido "funcional" da música procurávamos o "imprevisível".
Daí a satisfação com os resultados finalmente obtidos. Liricamente, está mais
associado a uma necessidade de renovação face a todo um período de
transformações enquanto pessoas/artistas - nesse sentido podemos considerar
quase um conceito comum entre os temas, abordado de uma forma metafórica.
Até ao momento não há nota de «post human»
ser editado por um selo discográfico. Opção ou falta delas?
M. A.: Foi meramente opcional - neste colectivo
temos a particularidade de conseguirmos fazer de tudo um pouco, seja a nível de
produção musical ou multimédia, daí que todo o processo de concretização do
álbum viesse a ser facilitado sem grandes apoios externos. De qualquer das
formas, a associação a uma editora não foi de todo posta de parte, sendo até
algo que nos interessa bastante, mais por uma questão de promoção, divulgação e
distribuição. Esperamos apenas que, eventualmente, alguma possa vir ao encontro
dos nossos objectivos enquanto artistas.
Com um som destes como imaginam que será o
resultado ao vivo? Já há perspectivas de subirem ao palco?
M. A.: Queremos acreditar que quando o nosso
trabalho for apresentado ao público em formato de concerto possamos traduzir
claramente a mensagem musical que apresentamos em disco com toda a
proficiência. Para isso, vai ser essencial toda uma fase de preparação em
formato de ensaio colectivo e um estudo da logística necessária para um
projecto tão exigente em termos de aparato instrumental e tecnológico, que
ainda nos trará algumas dores de cabeça até à sua conclusão. Em termos de
perspectivas para quando subirmos aos palcos, só o tempo e quem nos segue o
ditarão.
Apesar de já terem "desmentido" o
estatuto de "supergrupo", a verdade é que o vosso colectivo é respeitado
e tido como uma mais-valia em termos criativos para o cenário nacional. Acham
que acabam por marcar a diferença dentro do nosso panorama?
M. A.: Em relação a isso a música falará sempre
por si - enquanto pudermos fazer aquilo que mais gostamos, da forma que bem
entendermos, sem quaisquer barreiras criativas, e face a isto a apreciação da
mesma for positiva, então demonstraremos que, por vezes, remar contra a maré e
contra as tendências tem o seu valor e as pessoas respeitam a nossa atitude de
necessidade de renovação, de experimentalismo na variedade musical e ambição
criativa. Como grupo, sentimos que musicalmente temos os recursos certos para
atingir esse fim - somos seis pessoas bastante ambiciosas e capacitadas nesse
sentido.
Nuno Costa