RICARDO GORDO: entrevista exclusiva
METALICAMENTE FADISTA
Sem intenção de o fazer, cunhou todo um novo subgénero
musical, ainda em definição - o fado metal. Originalmente guitarrista de metal,
Ricardo Gordo veio a apaixonar-se pela guitarra portuguesa e nada voltou a ser
como era. De espírito inovador, ecléctico e empreendedor, o músico não se fez
rogado e, contra ventos e tempestades, fundiu os dois mundos que o apaixonam.
Mas terá a música deste génio da(s) guitarra(s) mais de metal ou de fado? Falámos
com o músico para saber mais.
Em 2012 cunhou "oficialmente" o subgénero musical
fado metal através do tema com o mesmo nome, incluído no EP «Serendípia», e que
posteriormente figurou também no EP «Fado Metal» e no álbum «Mar Deserto». Dado
ser este género uma fusão entre dois estilos entendes que o fado metal é um
subgénero do fado? Ou do metal? Ou de ambos?
Antes de existir este rótulo,
«Fado Metal», foi o título da música. Só após o tema ser editado comecei a ser
associado ao título, e julgo que o rótulo foi surgindo a partir daí. Toda a
gente partia do princípio que [fado metal] era o género musical que eu tocava e
que, por acaso, havia uma música com esse nome, talvez um pouco à semelhança do
que aconteceu com os VENOM e o black
metal. Não posso afirmar que [o fado metal] se trata de um subgénero nem
de fado nem de metal. Creio mesmo que seria pretensioso da minha parte afirmar
que criei um subgénero. Apenas posso assegurar-te que isto é a música que
sinto, que imagino. Pego na guitarra portuguesa e é o que sai! Oiço heavy metal
desde criança e adoro a guitarra portuguesa, não estou minimamente preocupado
com os rótulos nem com os estigmas da sociedade em relação ao fado e ao metal.
Portanto, aliando as minhas influências ao conhecimento que possuo da execução
deste instrumento, o resultado é este.
Na sua perspectiva, qual é a forma pura, ou clássica, se
quiser, de fado metal? Uma combinação de guitarra portuguesa, baixo e bateria digital
(à semelhança do que podemos ouvir nos temas «Fado Metal» ou «Cegueira na
Escuridão», por exemplo) ou uma clássica banda de metal actuando com o
incremento de uma guitarra portuguesa e, eventualmente, de uma voz fadista (ao
estilo do que os MOONSPELL fizeram com a Carminho no tema «All Together Now»)?
Então o fado metal é mesmo
um estilo, é isso? A combinação dos instrumentos é irrelevante, pois o que
importa é como idealizas a música no seu estado final. Nesta coisa da música
pretende-se que, enquanto compositor, te sintas realizado com o produto final.
Relativamente à escolha de instrumentos, ou de teres voz ou não, isso já
depende daquilo que pretendes transmitir às pessoas. Deixa-me salientar que a
bateria usada no disco era electrónica por uma questão de orçamento. Era caro
ir para estúdio gravar uma bateria acústica e a digital estava na casa do
baterista... No próximo disco deverei manter este conjunto de instrumentos, pessoalmente
gosto do resultado. Sempre toquei com baixo e bateria, por isso esta combinação
faz todo o sentido para mim, ainda que seja para fazer a base a uma guitarra
portuguesa.
Constituirão ambas as abordagens musicais descritas anteriormente
já uma subdivisão uma da outra? Em caso afirmativo, na sua opinião qual deriva
de qual?
A questão dos rótulos e dos
subgéneros é muito complicada para mim. Entendo que a música é definida por
quem a faz. Se vais ouvir Frank
Zappa vais dizer que ouves rock progressivo dos anos 70? Dizes que vais ouvir
Zappa e pronto. Os JETHRO TULL também
são dessa época e têm um estilo completamente distinto. Como poderemos englobar
estas bandas numa palavra se soam tão diferentes? Não quero soar arrogante, mas
não dou muita importância a este tema, acho que é mais uma questão comercial
para as editoras saberem em que prateleira metem a sua "carne" à
venda e eu não percebo nada de comércio.
Toda a gente partia do princípio que [fado metal] era o género musical que eu tocava e que, por acaso, havia uma música com esse nome, talvez um pouco à semelhança do que aconteceu com os VENOM e o black metal.
Embora tenha alcançado maior notoriedade enquanto músico de fado
(apesar de não considerar a sua música eminentemente enquanto tal) o seu
percurso já é longo, sendo você um proeminente guitarrista também na área do metal,
nomeadamente enquanto membro dos WISDOM. Fale-nos do seu percurso musical até ao
ingresso na licenciatura em guitarra portuguesa.
Realmente não me considero
um guitarrista de fado. Já o fiz, mas não tenciono voltar a fazer. Não é uma
linguagem que me preencha enquanto executante, mas respeito e admiro muito
vários guitarristas de fado, que até posso assegurar que me influenciam
bastante enquanto músico. Relativamente ao meu percurso, como referi oiço heavy
metal desde criança. Deveria ter cinco anos quando já ouvia cassetes-pirata dos
IRON MAIDEN, SLAYER, MEGADETH... No entanto, o primeiro
instrumento que aprendi a tocar foi flauta de bisel, com uns oito anos. Tocava
melodias simples e músicas infantis. Aos dez anos recebi do meu pai a primeira
guitarra eléctrica e rapidamente deixei a flauta. Era uma Squier Stratocaster
branca. Nessa época o meu ídolo era o Dave Murray, dos MAIDEN, por isso foi a guitarra certa para mim.
Ainda assim, aprendeu a tocar outros instrumentos.
Sim, mais ou menos por essa
altura comecei a estudar violoncelo, mas o meu interesse recaía cada vez mais
sobre a guitarra eléctrica. À medida que evoluía no instrumento ia conhecendo
cada vez mais bandas de metal e, por consequência, guitarristas fantásticos. Nessa
altura comecei a aprender músicas dos METALLICA,
MEGADETH, PANTERA, e aos catorze anos formei a banda que seriam os WISDOM, de Portalegre. Foi uma banda
algo mediática na época por dois motivos: primeiro, porque éramos muito novos
(tínhamos entre quinze e dezoito anos) e, em segundo lugar, porque só tocávamos
material old school relativamente
complicado de executar, como o «Master Of Puppets» [METALLICA] ou o «Hangar 18» [MEGADETH].
Inclusive, chegou a ter bandas em outras cidades, correcto?
Depois dos WISDOM fui para o Porto e fiz audições
para várias bandas, mas nada que me enchesse as medidas. Cheguei a fazer uma
audição para vocalista dos PITCH BLACK. Não fiquei na banda mas mantive
amizade com o pessoal até hoje. Então, formei os SUN OF A BEACH BLUES BAND, que, ao contrário do que o nome pode
indiciar, não era um grupo de blues, mas a banda mais rocker que já tive. A nossa sonoridade assemelhava-se à dos UGLY KID JOE. Tocávamos rápido, pesado,
as malhas tinham groove e eram bluesy e as letras falavam quase sempre
de uma Daisy que nunca existiu. [risos] Foram uns quatro anos muito loucos. A
banda tinha muito potencial e quase assinámos com uma editora, mas éramos
demasiado rebeldes e ao mesmo tempo ingénuos para conseguirmos levar aquilo a
sério. Então, os SUN OF A BEACH acabaram
e eu mudei-me para Castelo Branco. Comecei a estudar guitarra portuguesa e aí
parei com as bandas a tempo inteiro. Era complicado dedicar-me a dois
instrumentos em simultâneo e tive de fazer um estudo intensivo de guitarra portuguesa.
Cheguei a praticar sete horas diárias e a desenvolver tendinites devido
a isso. Só no fim da licenciatura voltei aos palcos para tocar guitarra eléctrica
novamente. Tive o privilégio de o fazer com o meu mestre Custódio Castelo no
Festival de Música do Mundo de Sines em 2013, fi-lo com os SECRET LIE, enquanto substituto e a convite do Tó Pica, em 2014, e
ainda nesse ano fui guitarrista do cantor José Freitas, que participou no Factor
X.
Tendo um gosto especial pela inovação e experimentação, das
várias abordagens musicais patentes nos seus discos (recordemo-nos também, por
exemplo, do "cheirinho" a música étnica que também por lá se
encontra) quais as que o apelam mais aos sentidos enquanto criador?
A que me deixou mais
satisfeito foi sem dúvida a [do tema] «Miranda». A mistura era algo arriscada e
ousada, mas no fim consegues mesmo notar que está lá o Ricardo Gordo, o Sales
no baixo e tens o Stereossauro e o Razat a fazerem o resto da magia. O
resultado foi tão gratificante que estamos todos a trabalhar noutras coisas. No
entanto, a minha necessidade de expressão remete-me mais para aquilo que fiz
sempre - juntar um baixo, uma bateria, uma guitarra ritmo e eu enfio-me por ali
com floreados de modo a que surja uma maionese minimamente audível e que me
encha de satisfação.
Dadas as características das suas músicas, quais são os principais
desafios com que se depara no processo criativo e de execução?
O principal desafio é fazer
música no verdadeiro sentido da palavra. As características da minha música não
são especiais nem diferentes das outras. Criar uma melodia que seja realmente
bonita e expressiva é difícil, tem de ser algo natural. Por norma, tento não
forçar o processo criativo. Apenas sei quando tenho de compor... é uma
necessidade! Quase como saciares a fome. Sentes e sabes que tens de resolver.
No estúdio, as dificuldades já passam por executar o instrumento correctamente,
com a técnica certa, com um bom sincronismo, um bom timbre, tocar no tempo
certo... esses problemas de músico que detesta gravar em estúdio. [risos]
Quais são as principais diferenças que encontra, a nível
técnico e de execução, entre a guitarra eléctrica e a guitarra portuguesa?
Por vezes, é ingrato exprimir-me
num instrumento ou noutro. Por um lado, domino melhor tecnicamente a
guitarra eléctrica, por outro, domino melhor harmonicamente a guitarra
portuguesa. Julgo que o feeling
acaba por ser sempre o mesmo, é a capacidade de me exprimir que pode diferir devido
às minhas limitações técnicas. Os timbres de uma e de outra são únicos e
garanto-te que a satisfação ao tocar nas duas guitarras é exactamente a mesma.
Acho que a minha grande guerra pessoal será esta indecisão entre qual das duas
escolher! É como se tivesse uma mulher e uma amante... quero as duas e não
consigo largar nenhuma! [risos]
Como funciona o seu processo de composição e arranjo? Por
exemplo, ao compor fá-lo com uma voz específica em mente ou a ideia surge numa
fase posterior?
Por vezes estou a tocar
guitarra e sai a melodia. Às vezes, por me enganar numa nota, surge uma ideia
para uma nova melodia. É a magia de não dominar o instrumento a funcionar! Mas
o mais frequente é imaginar melodias, sonhar com elas. Pego num instrumento e
tento executar aquilo que imagino. Depois, é decidir com que instrumento vou
gravar o tema. A partir daí, no processo de gravação, acabo por ter ideias
novas a nível de estruturas e harmonias e a música desenvolve.
A sua música reflecte os seus gostos musicais variados. Neste
sentido, com que outros estilos sente mais afinidade?
O meu eclectismo musical
veio do meu pai. Ele ensinou-me a ouvir música. Hoje em dia acho que até ouço
mais estilos de música que ele. E a verdade é que há boa e má música em todos
os géneros. Realmente consumo muito metal e rock diariamente, mas também tenho
o hábito de ouvir música dos anos 60, 70, 80, seja jazz, swing, blues, hard
rock ou rock progressivo. Também já consumi muita música tradicional e erudita.
O facto de ter estudado música também me obrigou a conhecer muita coisa. De
todos os estilos que ouvi fui seleccionando as bandas ou artistas que mais me
diziam. Posso salientar Miles Davis, Frank Zappa, JETHRO TULL, GENTLE GIANT, NEIL YOUNG & CRAZY HORSE, Jimi Hendrix, LED ZEPPELIN, DEEP PURPLE, Jaco Pastorius e WEATHER REPORT, CAMEL ou PINK FLOYD são algumas das bandas que mais me influenciaram do ponto de
vista criativo. Depois, Custódio Castelo, Carlos Paredes, Fontes Rocha e José
Manuel Neto, são alguns dos executantes de guitarra portuguesa que eu admiro.
Quando comecei a "magicar" esta mistura de guitarra portuguesa com uma base "metaleira", fui muitas vezes desencorajado por pessoas que acharam a ideia descabida.
E no geral, que executantes sente serem as suas principais
influências, aqueles que moldaram o Ricardo Gordo que hoje conhecemos? Há
pontos de contacto com os nomes que acabou de referir?
Sim, alguns. Vou esquecer-me
de muitos, mas tenho de salientar Dave Murray, Jimi Hendrix, Stevie Ray
Vaughan, Kirk Hammet, Marty Friedman, Alexi Laiho, Jimmy Page, Ritchie
Blackmore, David Gilmour, Dimebag Darrell, Steve Vai, Custódio Castelo, Carlos
Paredes, Brian May, Tony Iommi, Angus Young, Birelli Lagrene, Jaco Pastorius,
Frank Zappa, Miles Davis, Albert Collins, Johnny Winter, Alvin Lee, John Sykes,
Zakk Wylde, Randy Rhoads e Tó Pica!
A aceitação do público face à sua música tem sido muito boa.
No entanto, de que forma vê a aceitação que a mesma suscita entre o público do
fado e o do metal? Depara-se com muita ortodoxia ou, pelo contrário, com mentes
abertas?
Realmente este fenómeno de
encontrar metaleiros e ouvintes de fado num mesmo concerto é algo estranho e ao
mesmo tempo gratificante. Mas esta quebra de barreiras agrada-me. A necessidade
de rotular um estilo já de si é uma barreira e eu acredito num mundo melhor
onde o fado e o metal possam viver em harmonia. [risos] No início, quando
comecei a "magicar" esta mistura de guitarra portuguesa com uma base "metaleira",
fui muitas vezes desencorajado por pessoas que acharam a ideia descabida.
Nunca tive em conta os comentários depreciativos e nunca deixei de ser fiel aos
meus gostos. Compus como sentia que devia fazê-lo, de forma descomprometida e
sem pretensiosismos. Felizmente, o resultado acabou por agradar a muita gente e
hoje em dia dou-me por feliz por ter salas cheias de pessoas que já conheciam o
meu trabalho. Sou congratulado muitas vezes pela fusão que levei a cabo. Muita
gente me diz "já tinha imaginado esta mistura, finalmente alguém consegue
fazê-lo". Este feedback por parte
do público é a melhor aprovação que posso ter relativamente ao meu trabalho.
Entretanto, já está na fase de composição do próximo álbum.
Encontrando-se o fado metal ainda em definição enquanto género musical, o que é
que podemos esperar desse registo em termos estilísticos e não só?
Não gosto de falar sobre o
que ainda está em construção para não criar demasiadas expectativas. Apenas
posso garantir que o próximo disco vai ser mais maduro, mais cuidado, vai ter
uma melhor produção e que não vai ter tanta experiência a nível de misturas
como o «Mar Deserto». Vai ser um disco mais influenciado pelas minhas raízes "metaleiras".
Posso no entanto dizer que gostava, um dia, de gravar um álbum a solo com
guitarra eléctrica. Seria bom convidar vários amigos que fui fazendo ao longo
da minha curta carreira e juntar todos num só disco. Como se de um jantar de
comemoração se tratasse, entendem? Sentas-te à mesa, serves-te, comes, bebes e
passas um bom momento com aquela malta toda.
Dico
Fotos
gentilmente cedidas pelo entrevistado