BIZARRA LOCOMOTIVA: entrevista exclusiva com Miguel Fonseca
OPERA
MORTEM
Podíamos
considerar um antes e depois de «Álbum Negro». A crescente e profusa carreira
dos BIZARRA LOCOMOTIVA sofreu um perigoso golpe de genialidade com o seu álbum de
2009, mas os governantes desta sinistra mas coruscante entidade encontraram com
aparente facilidade um novo ponto de paragem obrigatória na sua expedição com
mais de vinte anos. Chama-se «Mortuário» - um sinal aberto e cavado de que a
morte e a decadência podem promover fortemente a auto-superação. Miguel Fonseca
(o homem que dorme com a guitarra aos pés da cama) está convicto de que a
máquina nunca respirou tão bem e que a tumultuosa realidade que os circunda inspirou
o seu disco mais visceral de sempre. Chama-lhe uma "ópera industrial"
(nas lojas a 23 de Fevereiro).
Apesar
de alguns lançamentos intercalares, os últimos dois álbuns dos BIZARRA
LOCOMOTIVA saíram com um intervalo de sensivelmente cinco anos. Como se pode
interpretar esse ínterim? Já não estão tão disponíveis como há quinze ou vinte
anos ou simplesmente um álbum de BIZARRA é cada vez mais exigente de escrever?
Será que isso também serve para se distanciarem criativamente entre álbuns e
limpar um pouco a mente?
Existem músicas neste novo trabalho que foram compostas antes do «Álbum Negro». Tínhamos 24 temas em pré-produção dos quais escolhemos estes catorze para trabalharmos e definirmos o conceito que viria a ser o «Mortuário». É um processo de composição constante. Estou sempre a compor e a registar ideias que depois vão sendo trabalhadas e amadurecidas. O facto de ter demorado seis anos deve-se apenas a imprevistos e algumas lições de vida por que passámos no seio da banda recentemente, por entre mortes e nascimentos nos seios das nossas famílias. O que não impediu, mesmo assim, de irmos dando concertos esporadicamente, como vem sendo hábito. Assim que surgiu a ideia do conceito para o «Mortuário» foi tudo mais fácil e o trabalho começou a tomar forma. Foi um trabalho feito sem pressas, pois só seria liberto quando estivéssemos satisfeitos com o resultado final. Acabou mesmo por superar todas as nossas expectativas acerca do mesmo, pois a fasquia era alta, dado o impacto que teve o «Álbum Negro», e podemos dizer com toda a certeza que este é o nosso trabalho mais bem conseguido a todos os níveis e que nos sentimos mesmo muitíssimo satisfeitos com o resultado final.
Existem músicas neste novo trabalho que foram compostas antes do «Álbum Negro». Tínhamos 24 temas em pré-produção dos quais escolhemos estes catorze para trabalharmos e definirmos o conceito que viria a ser o «Mortuário». É um processo de composição constante. Estou sempre a compor e a registar ideias que depois vão sendo trabalhadas e amadurecidas. O facto de ter demorado seis anos deve-se apenas a imprevistos e algumas lições de vida por que passámos no seio da banda recentemente, por entre mortes e nascimentos nos seios das nossas famílias. O que não impediu, mesmo assim, de irmos dando concertos esporadicamente, como vem sendo hábito. Assim que surgiu a ideia do conceito para o «Mortuário» foi tudo mais fácil e o trabalho começou a tomar forma. Foi um trabalho feito sem pressas, pois só seria liberto quando estivéssemos satisfeitos com o resultado final. Acabou mesmo por superar todas as nossas expectativas acerca do mesmo, pois a fasquia era alta, dado o impacto que teve o «Álbum Negro», e podemos dizer com toda a certeza que este é o nosso trabalho mais bem conseguido a todos os níveis e que nos sentimos mesmo muitíssimo satisfeitos com o resultado final.
Podemos dizer com toda a certeza que este é o nosso trabalho mais bem conseguido a todos os níveisEm virtude desse impacto provocado pelo «Álbum Negro» sentiram a dada altura que nem valia a pena tê-lo como "farol" criativo? Ou seja, «Mortuário» é composto sem essa referência, ainda que mantenha uma mensagem igualmente negra?
Foi algo inconsciente da nossa
parte, fomos simplesmente compondo e as coisas foram tomando forma. Quando
começámos a discernir o que tínhamos entre mãos percebemos que acabámos por
fazer um álbum ainda mais negro, mais denso e mais pesado que o próprio «Álbum
Negro», que até então tinha sido o mais extremo entre todos os outros discos
que editámos. Isso surpreendeu-nos, de facto, e o conceito do disco reflecte
isso mesmo - o que passámos recentemente nas nossas vidas funcionou como uma
espécie de causa-efeito e que acabou por ter o impacto que teve na nossa obra.
Este disco reflecte, claro, também o óbvio que nos rodeia, como a degradação da
civilização e do estado social, onde sentimos um constante atentado à nossa
liberdade e aos nossos direitos como cidadãos. Isso tudo acabou por ser parte
integrante do conceito e de se reflectir no nosso som onde fizemos também
alguns experimentalismos de ambiências e de produção diferentes do comum, para
o trabalho ter essa carga pesada e densa. Criámos assim a nossa "ópera
industrial". Ópera em latim quer dizer trabalho... é um trabalho de peso,
tem um conteúdo lírico muito surreal e musicalmente erudito também, onde
utilizámos samples com sonoridades
específicas para tal, tais como trompas do Tibete, ensembles de cordas, gongos, sopros, tímpanos, etc. O disco dispõe
de um vasto leque de sonoridades que se fundem num todo de elementos que compõe
o imaginário bizarro que temos vindo a criar ao longo da nossa carreira.
Sendo os BIZARRA LOCOMOTIVA
uma das bandas portuguesas mais personalizadas e incendiárias ao vivo, a
tentativa de transpor esse ambiente para «Mortuário» tornou-se num processo
muito complexo?
No
conceito inicial deste trabalho fizemos questão que soasse como se fosse tocado
ao vivo, e para isso toda a produção do disco foi pensada como tal. Seja na
escolha dos sons e dos samples onde, inclusive,
usámos sons do nosso próprio público na composição dos temas. Não escondemos os
gritos que o baterista dá quando está a tocar e na captação dos instrumentos
também não escondemos ruídos de fundo onde evidenciámos até todos os pormenores
live dos takes com técnicas de captação específicas. Na edição deluxe fizemos questão também de incluir
um tema extra de oito minutos que, no fundo, é uma improvisação total feita em
estúdio, tal como costumamos fazer por hábito no fim dos concertos, onde ainda
ficamos a explorar a adrenalina que nos resta nas veias com jams totalmente improvisadas na hora! Usámos
captações e ambientes de sala não convencionais. Fizemos experimentalismos, tais
como captar as vibrações das cordas do piano durante as gravações das baterias
usando isso como reverberação de sala, por exemplo.
Com o vosso típico espírito
sagaz e crítico - por vezes quase punk - falar dos males da sociedade tornou-se
demasiado fácil nos tempos que correm? Acumularam muita tensão ao longo dos
últimos anos ao ponto de estarem "atormentados" com algo que se passa
ao vosso redor, nomeadamente na realidade portuguesa?
Tudo o que nos rodeia acaba por
se reflectir na nossa maneira de criar, é óbvio. Essas maleitas contemporâneas
são globais. Basta ver as notícias onde a guerra e as doenças são os negócios mais
lucrativos, como a venda de armas aos países do terceiro mundo para gerar
conflitos com o interesse de irem lá depois explorar os seus recursos. As
farmacêuticas que criam vírus em laboratório para depois provocarem
secretamente epidemias e ganharem biliões com vacinas e medicamentos a preços
astronómicos. As curas não são, de todo, interesse para eles. É algo que me
revolta particularmente, pois recentemente, num espaço de dois anos, perdi o meu
pai e a minha irmã para um negócio chamado cancro... Todos os dias vemos nas
notícias matar por religião, que sempre foi o principal rastilho do ódio e o
principal travão de toda a evolução possível da raça humana e só tem o intuito
de separar os credos e as raças e gerar mais conflitos para haver mais
oportunidades de vender armas e gerar mais guerras. É um ciclo vicioso onde a
manipulação dos media enterra cada
vez mais a cultura, pois querem o povo estúpido e obediente para o tal um por
cento continuar confortavelmente na sua redoma estanque a mandar e gerir isto
tudo. Posso dizer que sinto na pele a vergonha da condição humana e a
vergonha de habitar neste planeta enquanto tudo isto existir. É algo que
não dá para evitar. Basta olharmos à nossa volta para percebermos que isto está
tudo muito errado!
Haverá quem diga que a "arte
negra" pode ser destrutiva e que seria aconselhável fazer-se discos mais
alegres e "coloridos". Será mesmo uma necessidade focarmos o que está
mal para podermos evoluir? Não seria mais lógico falarmos do que está bem e de
coisas pacificadoras para que o mundo melhorasse?
Uma colisão apocalíptica seria
uma boa solução. Os nossos genes são mais do que obviamente um vírus que está a
destruir este organismo vivo que se chama planeta Terra. Não há solução
possível. A nossa maldade é sempre superior. Somos uma experiência genética
falhada que se irá autodestruir. É só uma questão de tempo. Por isso, que voltem
os dinossauros, por favor!
Sentem que este é realmente
o ponto mais alto da vossa carreira, até porque já afirmaram que nunca se
sentiram tão bem ao ouvir a mistura final de um disco vosso? A nível criativo,
pelo menos, sentem-se no auge?
Sim, sentimos de facto
que é o nosso melhor trabalho. Também posso dizer que foi uma evolução
natural da banda. Amamos o que fazemos e tudo o que fazemos tem um
propósito. Gostamos de nos entregar a 100 por cento e isso traz os seus
frutos posteriormente, as pessoas sentem essa entrega. Gostamos de dar um bom
espectáculo sonoro e visualmente coerente às pessoas que nos seguem.
Este é também o primeiro
disco em que participa o Alpha. Pode dizer-se que há uma evolução em termos de
"maquinaria" ou a composição continua a funcionar como sempre?
O «Mortuário» é talvez o nosso
disco mais colectivo até à data. Em termos de cunho pessoal de cada um de nós,
cada elemento teve mais expressão e peso no trabalho final. Isto também se deve
ao facto de estarmos juntos já há uns bons anos com esta formação e de nos
conhecermos todos um pouco melhor, o que acaba por se reflectir bem no som do
disco.
Sinto na pele a vergonha da condição humana e a vergonha de habitar neste planeta
Sendo que se encarrega
particularmente de captar sons para aplicar na banda, como é a sua rotina nesse
aspecto? Tem de estar sempre com o ouvido atento aos ruídos que vêm do
dia-a-dia, da natureza? Faz muitas experiências, dá por si sempre a captar
sons? Qual foi o mais bizarro que já captou ou aplicou num dos vossos temas?
Adoptei um método do Salvador
Dalí que consistia em dormir com uma tela aos pés da cama e assim que acordava
registava logo os seus sonhos. Eu costumo dormir com uma guitarra aos pés da
cama e um gravador ao lado. Muitas das músicas que componho são fruto de
sonhos. Se sonho com uma música ou uma ideia em particular, assim que
acordo a primeira coisa que faço é escrevê-la ou gravá-la, porque se se passarem
alguns minutos e não me concentrar, essa ideia acaba por se apagar da memória e
nunca mais me consigo relembrar dela. É crucial esse aspecto. É um processo estranho
mas que tenho vindo a explorar e aperfeiçoar ao longo dos anos. Algumas das
músicas do «Mortuário» nasceram assim. Posso referir, por exemplo, «Na Febre de
Ícaro», «Sudário de Escamas», «Hecatombe» e «Insulto à Besta». As suas ideias
base surgiram todas dessa forma e depois foram trabalhadas. Algumas
estruturalmente estão idênticas, mesmo como saíram dos sonhos,
instrumentalmente pelo menos... O facto de ter crescido na margem sul, mesmo em
frente à Lisnave, sempre na presença constante dos ruídos de guindastes e dos
subgraves dos motores dos petroleiros, 24 horas por dia, também teve o seu
impacto na minha maneira de compor e nas minhas influências sonoras. Também
cresci a ouvir uma rica fonoteca musical de família, em vinil, dos grandes
clássicos contemporâneos... Por isso, entre uma Lisnave e um Karlheinz
Stockhausen ou entre um Béla Bartók e uns KING CRIMSON ou entre um
Gyorgy Ligeti e uns GENESIS (com Peter
Gabriel), são para mim algumas das influências mais marcantes e que se reflectem
em absoluto no som da BIZARRA LOCOMOTIVA. Daí termos incluído também neste «Mortuário» uma
versão de «Intruder» do Peter Gabriel do seu álbum a solo «Melt» que tenho como
a génese percussora da música industrial e que se evidencia bem como sendo uma
das nossas influências, muito também pelos métodos de composição que ele
utilizava na época que são basicamente os mesmos que sempre usei. Parto de uma
biblioteca sonora que tenho vindo a reunir ao longo dos anos e a partir de um
determinado som ou ambiente captado começo a estruturar e delinear as
composições ritmicamente.
A imagem é também um dos
vossos pontos fortes. Não haverá dúvidas que desta vez esmeraram-se ao máximo e
o resultado é, no mínimo, surpreendente. De quem parte as ideias para o
vestuário ou para a maquilhagem?
É um processo criativo constante
onde estamos sempre a trocar ideias, pois o imaginário gráfico da BIZARRA LOCOMOTIVA pode ser muito vasto. No caso deste novo trabalho,
o Alpha, que já tem como hobby a
feitura de caracterização e montagem de action
figures (o que ajudou muito), construiu alguns adereços para a sessão
fotográfica que fizemos, tais como as headpieces.
Uma ideia puxa a outra e a imaginação é o limite.
Por fim, até que ponto pode
crescer uma banda do vosso género, ainda mais cantando em português? O mercado
nacional preenche todos os vossos requisitos?
A língua não é barreira, a
verdadeira barreira é a mentalidade das pessoas que é sempre muito fechada. Há
vinte anos que o underground passou ao mainstream
com os NIRVANA, por isso creio que os ventos jogam a nosso favor. Gostaríamos
de subir a fasquia com este trabalho e chegar ao maior número de pessoas
possível. Contamos para isso com a nossa nova editora que nos tem dado um apoio
que nunca tivemos! Ao lançarmos um produto apelativo e de qualidade conseguimos
chegar a mais pessoas e em vez de editarmos somente um disco em formato
convencional que poderá acabar esquecido na prateleira, apostamos também na
qualidade do invólucro e do objecto em si. Esperemos que seja um trabalho bem
recebido e que dê os seus frutos.
Nuno Costa