Bandas de covers: a excepção, não a regra
Enquanto meio de comunicação, esta
e qualquer outra publicação (com ou sem estatuto profissional) deve reger-se
pelo rigor e isenção. No entanto, esta última qualidade é de tal forma subjectiva
que já ninguém acredita que alguém consiga distanciar-se totalmente daquilo a
que é mais sensível (até pela condição humana) no exercício da sua actividade
jornalística. No entanto, não se escandalizem: quer-se com isso explicar que
pelo simples facto de um meio de comunicação (mesmo que especializado) escolher
fazer a reportagem A ou B ou entrevistar pessoa X ou Y, não coloca em causa a
sua seriedade e muito menos deve ser confundido como gesto de discriminação, parcialidade
ou facciosismo. Há sim, princípios editoriais que se definem e em que se
acredita e reconheça-se que, em última instância, existem limites físicos, humanos
e financeiros. Tudo isto basicamente para dizer que o consenso é uma utopia, ainda
mais perante um povo de sangue quente e com muita dificuldade em viver em
harmonia com ideias e ideais diferentes. E ainda mais importante: a liberdade
de expressão é um direito da mais primaz das importâncias, e que obviamente
também me abrange. E é precisamente sobre esta última questão que me apetece dissertar.
Em concreto sobre a música original (independentemente do género) vs. covers num cenário como os Açores.
Provavelmente já todos perceberam
que a oferta musical no arquipélago sofreu forte mudança nos últimos anos.
Certo é que a crise forçou muitos agentes a reduzir custos e a jogar pelo
seguro (até aí tudo aceitável). Inclui-se nessa classe promotores,
patrocinadores, secretarias, mas também músicos que decidiram colocar em stand by ou em definitivo (não é certo) as
suas carreiras ligadas à música original. Repescando o tal princípio da
liberdade e juntando-lhe o adverso cenário económico, é perfeitamente legítimo
e compreensivo que se ajuste condutas e comportamentos em prol até da
sobrevivência individual. Convém frisar que nunca esteve e nunca estará em
causa a liberdade de alguém escolher que música tocar ou que banda contratar e
muitos menos qualquer opção de vida diferente da nossa. Está sim e tem estado mais em debate a defesa
do equilíbrio e da diversidade cultural partindo do princípio mais básico do
conceito de arte: a criação. Certo é que numa conjuntura como a actual é
naturalmente mais fácil abolir o que é considerado - muitas vezes erroneamente
- supérfluo ou ligado a estratos sociais minoritários ou desfavorecidos. Ainda
mais grave se torna quando as pessoas que estão a ser prejudicadas são
igualmente honestas no exercício das suas funções. E neste caso referimo-nos
aos músicos de originais.
Todavia, é impossível não
estabelecermos hierarquias que se compadeçam com certos valores e conceitos
universais, entendidos como basilares para o próprio progresso da raça humana.
Muito especificamente: criar (ou pelo menos tentar) será sempre mais aliciante, desafiante e valorativo do que recriar (ou reciclar, não obstante a deselegância do
termo). Pese embora todos os arranjos possíveis de aplicar a uma música, os
grandes clássicos só o são porque partem de uma concepção única e individual.
Reitere-se: bandas de versões existem em qualidade irrefutável, ainda mais quando
se nota um claro esforço de reinvenção (a título de exemplo confira-se os Driving Mrs. Satan), o que não se verifica na maioria esmagadora das bandas de covers regionais.
Cruzando isso com a enorme
descrença e perda de valores que uma crise arrasta, o que temos verificado é a inconcebível
tentativa de confundir facilitismo e falta de criatividade com a solução para
os nossos problemas culturais e financeiros. É dito e sabido que alguns músicos
regionais se tem insurgido contra a falta de oportunidades para apresentarem a
música que eles próprios criam (boa ou má). Do outro lado da barricada, temos
os músicos de covers (antigamente
chamados grupos de baile) "beliscados" com a afronta num altura em
que desfrutam das melhores opções de negócio. Não quer isto dizer que haja objecção
contra o seu sucesso e muito menos que se deseje a sua extinção. Certo é que
este caminho não pode ser visto como solução, quanto muito um mal menor e
temporário. Ainda menos compreensível é que se tente criar a imagem de que quem
se insurge contra a actual tendência se deve confinar ao silêncio e aceitar as
"regras", regras essas impostas por um mercado capitalista e não por
outro factor qualquer. Explique quem nunca escreveu uma canção (ou não o faz
por norma) se se sente na sua plenitude artística? Outro dado inquestionável é
que a qualidade será sempre um conceito subjectivo. Logo, muitas vezes é mais
agradável ouvir uma boa cover do que
um original reles. Ainda assim, tenha-se a consciência de que o crescimento de
um músico não se faz do dia para a noite. É preciso oportunidades e um voto de
confiança. Isto se estivermos realmente todos interessados na tal evolução
baseada na arte enquanto sinónimo de criação/superação.
Pois bem, superação é o elemento
chave para quem quer traduzir todo este assunto numa simples fórmula. Todos
temos lugar, como já muita gente frisou, mas não é isso que está a acontecer.
Está à vista de todos os hábitos que se estão a fomentar e que todos sabemos
que terá impacto nas gerações vindouras. Está-se a vender a ideia de que já não é
possível superarmo-nos, reinventarmo-nos, evoluir. Fico com a clara sensação de
que quando desaparecerem ícones tão marcantes como Madonna, Metallica, The Rolling
Stones, AC/DC, Iron Maiden (e podia-se enumerar tantos outros dos mais variados
estilos) estaremos então condenados a viver no passado de forma perfeitamente
resignada e conformada. Estagnação?
Para terminar, há uma realidade
tão evidente que muitos já não valorizam ou preferem ignorar. Por mais empenho,
técnica e competência que os músicos de covers
exibam, todos sabemos que o investimento de um músico de originais que baseia o
seu trabalho não só no palco mas também no estúdio, é incomparavelmente maior. Daí a preocupação. Mas nunca nos iludamos: nem todas as bandas de originais merecem a nossa atenção (o
mesmo com as bandas de covers), mas é
imperativo que se respeite quem ainda tem a coragem de tentar oferecer algo
mais à arte e à sua cultura. Foi assim que se escreveram as músicas que mudaram
a vida de muita gente e que as bandas de covers
agora avidamente interpretam (e lucram com isso). É preciso ainda perder-se o
terrível hábito de não se saber estar num debate tão sério como este. O que
temos assistido é a condenação veemente da opinião daqueles que timidamente vão
chamando a atenção para o problema. Não há "ninguém contra ninguém aqui", não há ninguém a tentar "atrapalhar" ninguém e muito
menos esta é "uma conversa que já mete nojo". Na gíria mais brejeira,
diria que não há por que haver "virgens ofendidas" sempre que se afirma
que tocar covers não deve ser a
filosofia predominante dos músicos de qualquer recanto do mundo. Todos sabemos
que esta é a verdade. Ou então assuma-se de vez a nossa falta de capacidade artística
e vivamos todos à sombra do que outros criaram com tanto talento e inspiração. Sejamos
um povo frustrado e sem ambição, sem cultura própria, sem perspectivas de
futuro e desenvolvimento. Sejamos a ilusão da felicidade que outros sentiram na
sua essência. Sejamos subservientes de manobras capitalistas. Sejamos tudo... menos
nós. Aplauda-se isso!
Covers? Sim. Como excepção, não como regra, por favor.
Nuno Costa